Finjo que não fumo
por Jorge Furtado
 

Finjo que não fumo e acabei indo sem cigarro.

Fumar daña la salud, lo advierte el Ministério de Salud Pública Y Bienestar Social.

É natal e eu estou aqui fumando um free paraguaio e pensando por que o Britto não vai na posse do Olívio. Por que eu estou fumando um free paraguaio é bem fácil de explicar. Ontem à noite fui a Belém Novo (28 quilômetros daqui,  pela Cavalhada) assistir à apresentação de uma releitura de "Quebra Nozes" executada pela escola Engenho de Dança em praça pública, dentro de um programa do governo do estado de divulgação da cultura gaúcha. O espetáculo é patrocinado, através da lei do incentivo fiscal,  por várias empresas, a Souza Cruz  entre elas. A adaptação é divertida, com grande destaque para uma bailarina de vermelho na cena do controle remoto, a melhor do espetáculo. O nome dela é Júlia. O show, marcado para as nove, começou as dez. A cena do controle remoto aconteceu perto das onze. Não levei cigarro, fui num bar, não tinha carlton. Me dá um free. É paraguaio. É bom? Não sei, eu não fumo. Quanto custa? Um real. Obrigado.

Por que o Britto não vai na posse é mais difícil de entender. Ele disse na televisão que admitia a derrota e desejou bom governo ao Olívio. Eu vi, mas não acreditei muito. Não acho que o Britto deseje que o Olívio faça um bom governo. Se fosse verdade, teria facilitado a transição fora da televisão. E não devia continuar gastando dinheiro em publicidade, páginas diárias nos jornais, não bastasse a vergonhosa enxurrada de incentivos fiscais aprovadas pela assembléia nos últimos dias de governo. Dificultando ao máximo a transferência de informações ao futuro governo, gastando o que não tem para defender uma proposta derrotada nas urnas e não comparecendo à posse, Britto deixa o Piratini pela porta lateral, para dizer o mínimo. A cena será documentada? Uma foto, um vídeo amador. Seria um bom registro, uma imagem para marcar o final do governo, sobem créditos ou a lista de incentivos fiscais concedidos em seu governo.

Até abril de 98 (último dado disponível) o governo Britto deixou de arrecadar em ICMS só através do Fundopem - Fundo Operação Empresa - 2 bilhões de reais. Só a Souza Cruz recebeu 884,5 milhões, ou 44,22 por cento do total destinado às empresas gaúchas. Não conheço argumento que justifique tamanha generosidade com dinheiro público para favorecer a mais lucrativa empresa multinacional do país. O lucro líquido da Souza Cruz em 97 foi de 308 milhões, 40% a mais que em 96.

(Empresas brasileiras que mais deram retorno para os acionistas em 1997: Ericsson: 99%, Pirelli: 82%, Gerdau: 61% , Souza Cruz: 60%. Empresas que tiveram mais lucro: Souza Cruz 31,3% e Brahma, de 30,1%. "Todo excesso de caixa vai para o acionista", declarou Mozart Galvão, tesoureiro da Souza Cruz, à Folha de São Paulo. Nos últimos três anos, a empresa mandou para a matriz americana - British American Tobacco - 750 milhões de reais.)

A geração de empregos foi a desculpa usada em palanques eleitorais. A ampliação da fábrica da Souza Cruz gerou 430 empregos, com promessa de 2.300 empregos até o ano 2000. Se a promessa for cumprida, o custo é semelhante ao da GM, onde o custo é de 385 mil por emprego. Talvez fosse interessante perguntar aos desempregados gaúchos se eles não preferem receber a parte deles em dinheiro. Com 385 mil reais dá para abrir algumas pequenas empresas. Com o governo Olívio, estas pequenas empresas talvez tenham chance de receber incentivos fiscais, juros subsidiados.

"As pequenas e médias empresas são responsáveis pela maior parte dos empregos gerados ou mantidos no país'', isso até o Kandir sabe. Mas as grandes empresas reclamam muito dos impostos, por isso pedem isenções. Numa carteira de cigarro, por exemplo, os impostos elevam o custo em  mais de 4 vezes (ou "429%", nas palavras de Flávio de Andrade, presidente da empresa no Brasil). As vendas estão caindo (15% no primeiro semestre de 98), mas os lucros continuam aumentando. Andrade diz que o aumento do contrabando é o principal responsável pela queda nas vendas. E calcula que 50 bilhões de cigarros são contrabandeados para o Brasil, representando um terço do consumo, que não pára de crescer.

O consumo crescente se deve, pelo menos em parte, à belíssima propaganda dos cigarros. Em 97, a Souza Cruz gastou US$ 44 milhões em publicidade (menos que o governo Britto em 98: 69 milhões de reais). R$ 2,5 milhões foram gastos na produção de um único comercial de hollywood, o mais caro anúncio para televisão de um anunciante brasileiro. ("Central do Brasil" custou R$ 2,9 milhões). No Brasil, o cigarro mata cerca de 80 mil pessoas por ano. Por isso o governo exige que a publicidade informe também que o cigarro dá câncer, mas eu acho que eles não dão a mesma ênfase as duas informações. Talvez aquela moça devesse completar a frase: "Alguma coisa nós temos em comum: câncer de pulmão".

O cigarro é caro, os fumantes muitos, muitos desempregados. (A nova fábrica da Souza Cruz em Cachoeirinha tem um robô alemão capaz de produzir 16 mil cigarros por minuto. Mas não se pode culpar a modernização pelo desemprego crescente. Nos EUA a oferta de emprego cresceu 24% desde 1980). Acho que isso ainda não explica inteiramente por que o Britto não vai na posse do Olívio. Mas certamente explica por que eu estou fumando um free paraguaio. Que globalização é esta que o sujeito não pode buscar uma carteira de cigarros do outro lado da fronteira, comprar por 20 centavos e vender por um real? Fuma quem quer!

Jorge Furtado