Noturnas
por Miguel da Costa Franco

 
O Alaor não servia para muita coisa, diziam que ele era troncho. Mas era grande. Assim, virou segurança da Rudder, prestando inestimáveis serviços à defesa do patrimônio alheio.

Trabalhou em joalheria, loja de departamentos, só em banco serviu uns três. E acabou numa fábrica de adubos. Lá, andou comendo uma guardete, que lhe fazia companhia. No sofá da sala do diretor. E até limpou as rodelas de porra com a fralda da camisa, como explicou para ele no outro dia. Mas esqueceu das marcas do coturno na parede caramelo! Dançaram os dois, ela só porque era feia.

Já tinha bem uns quantos anos quando foi contratado pela boate "Chesterton" para cuidar da porta da rua. No fim da tarde, para proteger as meninas que ficavam quase em pêlo na beira da calçada, para servir de chamarisco atiçando o pessoal dos ônibus e dos carros, a garotada que saía dos colégios, qualquer um, enfim. E de noite, até de manhãzinha, para correr os bêbados e os que não queriam pagar.

No começo, foi um deslumbramento. Nunca tinha visto tanta mulher junto, tanta perna, tanto peito. Cada tarde era uma nova alegria, as meninas sassaricando na calçada, ele protegendo, às vezes até abraçando quando estava um pouco frio. E tirando as "mãos bobas" dos outros, porque as dele foram ficando cada vez mais carinhosas, mais sutis, mais calibradas. Se um braço se esforçava no empurrão, o outro se arremetia num amasso, o pontapé de perna esquerda no borracho, uma coxeada de direita na protegida.

À noite, a coisa ficava mais reservada, todas as moças lá dentro, ele atiçando os barbados para entrar, procurando um táxi, conferindo o "pago" nas comandas. Quando o movimento amainava, ficava espiando os "shows": o da sereia Carla, com aquela baita cauda de peixe terminando num rabão maior ainda, o "strip" da Cibele, sempre encerrando com a entrada das cariocas, estas, sim, boas de balanço, que gaúcha de Espumoso, Santa Rosa, Herval ou Jacutinga, ou mesmo as que brotavam dos arrabaldes da cidade, como eram as meninas da "Chesterton", não tinham bem a receita do remelexo.

Bem mais tarde, quando se recolhia - um pouco para tentar o sono, que já amanhecendo é dificil de dormir, outro tanto pelas lembranças de há-pouquinho - dava uma revirada no tramansola, juntava as bolas de mão cheia, e aos poucos ia deixando surgir, naquele mar de pele que era a sua mastola, o cabeção meio roxo, meio envergonhado. Às vezes como lembrança do molhado das xexecas, untava as mãos com cuspe para ouvir o chap-chap conveniente. E logo, como um fole, via a coisa se agrandando, umas veias gordas se aprumando, a cabeça cada vez mais lisa até, de golpe, fazer meleca nos cabelos da barriga.

Depois da "sonífera", dormia bem.

E assim o Alaor passava a vida: estranho para ele era mulher vestida. Mesmo quando as via com roupa não podia deixar de adivinhar o formato dos gomos, se tinha ou não covinhas nas cadeiras, uma certa frouxidão nas carnes, se as ancas eram pontudas, a cor dos bicos de seio, se o rego era apertadinho. Ganhou cancha. Sabia de cor como se comportava uma bunda dentro e fora das calças ou se um peito era empinadinho ou todo zebrado de estrias só de ver o encaixe do sutiã.

Mas já não comia ninguém!

No princípio, porque era um cinquentão pelado e meio troncho, e de longe se percebia que dali o seu destino seria a cadeia ou o Cemitério da Santa Casa. Além do mais, era tudo puta de cem para cima, coisa que para o Alaor era salário de quinzena. Mas no fim, porque já não havia mistério, e como ele mesmo dizia, foi ‘garrando um certo nojo, perdendo as gana’. Mulher foi ficando menos interessante do que goiabada com queijo.

Mais e mais se agarrava na noturna. Com o tempo e as passadas de mão que vez ou outra havia dado nas meninas, fora pegando um pouco mais de jeito e tato, as pontas dos dedos, antes meio cascurrentas, agora sabiam resvalar com mais destreza, permitiam algumas ousadias, a variante "pára-quedas", o "rolo de macarrão" e tantas outras que só quem praticar com insistência pode um dia captar.

A noturna já ganhara ares de remédio: ao invés de um valium ou de um conhaque, uma punheta para adormecer!

E o seboso foi-se desenvolvendo com o exercício, o uso frequente foi-lhe dando substância. A cada tanto, sua pica lhe parecia mais taluda, a veia mestra cada vez mais calibrosa, ... isto é cabeção ou bolo inglês?, se perguntava, às vezes. Só de exibido, dera para desatar o brocoió com as duas mãos... Juntas. Uma depois da outra. Uma em polvo, a outra como quem pega o garfo. Uma no microfone, a outra no pincel. Uma indo, outra voltando...

Cada vez mais se afirmava a sua auto-suficiência. Ele se bastava. Quando quebrou a mão num soco, a canhota já estava bem treinada. A novidade até lhe trouxe novos ímpetos.

Esta tranqüila satisfação não poderia passar despercebida. O ar de "estou bem servido" correu de boca em boca pela zona do meretrício.

Em pouco, vinham meninas de todo lado conhecer o Alaor. Isso que o tempo não lhe ajudara em nada! Apenas agregara uns renques de grisalho no cabelo meio ralo e gorduroso. Mas muitas delas pediam pouso ou mandavam bilhetinhos para tentar o Alaor.

Não pensem que seu enfaro mudou. Agradecia pelos agrados, e por vezes acedia às apalpadelas das mocinhas mais afoitas, mais por gentil do que por matreiro. Manteve-se fiel à sua noturna, agora uma quase-paixão.

Quando, por fim, a idade exigiu dele um pouco mais de resguardo, a solidão a lhe pesar no lombo, aceitou a melhor oferta que lhe oferecia o destino. Escolheu Jacira, dentre as muitas que se ofereciam: uma índia feia e velha, cujos dotes mal serviam para arrancar uns poucos cobres nos arredores da rodoviária. (Fazia boquete sem chapa nos passantes mais pelados).

E se alguém lhe pedisse, mas Cristo, porque me escolheste esta china?, respondia orgulhoso, com ar pueril de guri:

- É moça mais que judiada, mas tem umas mãos que só vendo! Se criou, desde bugrinha, só descascando aipim, lá no oeste do Paraná.

Miguel da Costa Franco