CORTES SECOS DE UM ROTEIRO INACABADO

por Lupa Won tolla

Plano geral de um bar pouco movimentado, câmera vai fechando em uma mesa na qual se encontra uma garota. Plano médio, a garota está sozinha com uma jarra de vinho pela metade, está olhando para o vazio quando por trás dela chega um rapaz. Ele se senta na sua frente e diz:

- Demorei muito?

- Não, só o tempo de uma jarra de vinho.

- Olha o que eu trouxe para você. Coloca em cima da mesa um saco plástico com frutas.

- Bergamotas, uau!

- Seu desejo é uma ordem... E aí? Como é que foi no médico?

- Tudo bem, só que é verdade... Está por vir a confluência cósmica e todo aquele papo sobre a química de nossas peles, né, seu cretino?

- …

- Não sei como é que eu fui deixar isto acontecer. E pensar que com todo aquele vinho eu te chamava de irmãozinho, vizinho querido, amiguinho e outros diminutivos.

- Inocência premeditada esse é o meu mal. Você toda bela de bochechinhas rosadas e aquela lua no céu. Não resisti em colocar na prática a versão mais adulta que conheço de chapeuzinho vermelho e lobo mau... Tenho culpa mas não foi tão ruim assim, eu acho?

- Não, não foi, mas deveria ter sido. Quando você colocou a língua na minha orelha, eu devia ter vomitado, sei lá, uma tonteira etílica, um desmaio, mas não, pedi mais. Isso que eu odeio língua no ouvido.

- Eh! eh!... Posso tomar um gole?

Ela acena com a cabeça e fica olhando ele beber. É estranho notar que a intimidade de tomar vinho no mesmo copo, se estendeu em usufruir dos mesmos corpos, suar pelos mesmos poros. Os gestos não são os mesmos, mas a tensão parece a mesma.

O rapaz depois de dar o gole coloca o copo mais perto dela, uma demonstração de respeito pelo o que ele tomou, pelo o que pegou para si. O cuidado de não derramar o vinho em troca do leite derramado. (Não, não, infame essa, é a água. Troquei os trocadilhos).

- E agora o que você quer fazer?

- AAI! Não tenho a mínima idéia. Parece que não aconteceu. Podia ser apenas uma ressaca. Algo efervescente dentro de um copo e fim. Curada toda a irresponsabilidade. Tudo o que não se quer agora, se guardaria pra depois... Não sei...

- Eu sei, isso tudo é eufemismo pra dizer que você quer fazer um aborto. Não é isso?

- É... Mas eu tenho tanto medo...

Enquanto isso, num sistema microscópico, um espermatozóide faceiro conta seus planos para um óvulo meio desconfiado:

- Pensa bem, agora que eu já tô aqui, vamos constituir uma família, construir um zigoto lindo. Reunir um monte de células e fazer aquela festa, depois é só ver nosso negócio crescendo, dando lucros, o que você acha? Hein!?

- Sei não. Tudo bem que eu tenho todo capital inicial, mas as informações que estou tendo do departamento administrativo não são as melhores. É meio arriscado na atual conjuntura da minha organização, tá me entendendo? E se no meio da produção de hormônios e tudo mais me acontece uma catástrofe e vai tudo por água abaixo. Tenho pensado muito nisso. Todos os meus acionistas estão com um pseudópodo atrás.

- Eu sei, eu sei. A situação tá difícil pra todo mundo, mas olha só a quantidade de informações que eu trago do meu cliente. Inteligência mediana espetacular, olhos azuis, o nariz eu deixo por sua conta e o corpo com alguma terceirização de serviços, conseguiremos milagres. Há de convir comigo que o nosso produto pode revolucionar uma geração, ainda mais se regularmos o tempo de produção... E aí!?

- Tá bom, vou fazer umas ligações e colocar em andamento o nosso projeto. O difícil mesmo vai ser convencer o sistema nervoso, mas deixa comigo. Trato feito.

Organismo conectado, futuro programado. Abre-se a câmera a nível macroscópico.

Plano geral. O casal inicial num corredor repleto de mulheres e algumas garotas. Corte em plano conjunto, rapaz com a garota:

- Você não está nervosa, está?

- Um pouco.

- ...E aqui não se pode fumar, que sufoco!! Mas tudo bem com você, olha se você quiser desistir, ainda está em tempo. Você quer?

- Não. Eu já decidi. Quer fazer o favor de ficar calmo!! Sou eu que vou lá dentro!!

- Pô! Se ao menos eu visse quem saísse de lá. Esse suspense da iminência do crime é que me mata!

- Ahn, ahn! Muito obrigado, não basta o nervosismo, agora somos assassinos!?

- Não, Não... Desculpa, não foi isso que eu quis dizer... Olha lá, ela chamou teu número... Quer que eu vá junto, sei lá, segure tua mão... Pensa bem, ainda está em tempo. Você pode...

- Quer parar! Parece que a gente vai ter um bebê e não tirar um!!

O rapaz a abraça:

- Não fala assim... De alguma forma me perdoa... Boa sorte! Vai lá. Te espero na outra sala. Coragem!

E nas internas, a situação é meio desesperadora:

- Eu te disse, a conjuntura, estes tempos modernos, a invenção da pílula... Ai, ai, ai... Porque que eu fui te dar atenção. Tudo tinha que ser bem planejado, mas não, fizemos tudo nas coxas...

- Antes fosse!! Se fosse nas coxas, meu amigo, eu não estaria aqui, não é mesmo!? Os impulsos são foda.

"Vai lá!", eles dizem. "Não dá nada! Se der é bem pouquinho!", e agora isto, concordata e a demissão. Ou melhor a emissão. O mundo lá fora é cruel, camarada, e muito, muito frio.

- É eu sei... Bem, nos veremos em alguma parte da biosfera, quem sabe adubo ou...

Um barulho ensurdecedor de sucção. Fade in black.

Fade out. Plano geral em seqüência. Uma rua dorme tranquila enquanto cães vira-latas perpetuam sua espécie numa esquina.