Maus e Gen

 

Jorge Furtado

 

Não vi "O Resgate do Soldado Ryan" nem "Além da Linha Vermelha", os dois últimos filmes de guerra da praça. A ficção realista hollywoodiana sobre a guerra geralmente me faz lembrar o diálogo entre Mary O´Hare e Kurt Vonnegut, no prefácio de "Matadouro 5". Mary era mulher do companheiro de exército de Vonnegut, que estava escrevendo um livro sobre a segunda guerra.

- Vocês eram criancinhas durante a guerra. . . como aquelas que estão dormindo lá em cima! – disse ela.

Concordei com a cabeça. Tínhamos sido virgens tolas durante a guerra, bem no fim de nossa infância.

- Mas não é desse jeito que você vai descrever, é?

Não era uma pergunta, mas sim uma acusação.

- Não sei - respondi.

- Bem, eu sei - disse ela. - Vocês farão de conta que eram homens em vez de criancinhas e suas vidas serão interpretadas no cinema por Frank Sinatra, John Wayne ou algum outro desses velhos guerreiros glamurosos e safados. E a guerra parecerá formidável e teremos muitas guerras mais, que serão lutadas por criancinhas como aquelas lá em cima.

Hollywood certamente já está produzindo um filme sobre a guerra na Iugoslávia, alguma coisa envolvendo o resgate de soldados americanos presos e um garotinho que se perdeu do pai durante a fuga de Kosovo. Se ele tiver uma irmã mais velha que possa ser interpretada pela Cameron Diaz, melhor. Filmes de guerra, por mais pacifistas que sejam ou se pretendam ser, acabam virando um desfile de heróis assassinos, vendendo a idéia de que os problemas da humanidade podem ser resolvidos com coragem, ousadia e bombas de fragmentação. O star-system impede que os filmes se focalizem sobre as grandes vítimas da guerra, os cidadãos comuns. A velocidade do cinema é incapaz de captar o cotidiano de destruição da guerra, a rotina das noites insones na espera de bombas que podem cair ou não, a longa espera nas longas filas por um prato de sopa nos campos de refugiados, os anos perdidos na reconstrução das cidades, a tentativa inútil de reconstruir infâncias. As guerras reais são longas e muito chatas. E são vividas por crianças, órfãs, feridas e famintas. A prova incontestável da estupidez de qualquer guerra é que uma criança não pode entendê-la.

Parênteses: esta é a base da melhor entre as muitas boas idéias de "A Vida é Bela". O filme foi esculachado pelos patriotas de ocasião, ansiosos em pegar carona no merecido sucesso de "Central do Brasil". São dois bons filmes e só o primarismo comparativo imposto pela lógica do Oscar justifica o calor dos embates travados entre centralistas e vidabelinos. Rafael Polanczyk afirma aqui mesmo no Não 62 ("Prêmio Comprado") que "todos sabem que o filme "Central do Brasil" certamente foi o melhor já feito em nosso país". Desculpe, Rafael, eu também achei ridículo o Begnini no Oscar, acho que o Walter Salles é um grande diretor, adoro a Fernanda Montenegro e tudo, mas vou me permitir discordar de você. Sem ofensas. E desculpe qualquer coisa. Filmes não foram - ou não deveriam ter sido - feitos para competirem uns com os outros. Mas, para que eu não seja acusado de peessedebista nesta batalha entre a luz e as trevas, cito 5 entre os filmes brasileiros que, na minha modesta opinião, poderiam ser classificados na categoria "pelo menos tão bom quanto Central do Brasil": Rio Quarenta Graus, Rio Zona Norte, Vidas Secas, O Amuleto de Ogum e Memórias do Cárcere. Todos do Nelson Pereira dos Santos. Fim do parênteses.

Existem, é claro, grandes filmes de guerra e sobre a guerra. Só o Kubrick fez três, sobre três guerras diferentes: "Glória Feita de Sangue", "Doutor Fantástico" e o primeiro ato de "Nascido Para Matar". O Altman fez dois: "Mash" e "Exército Inútil". O Copolla fez um, "Apocalipse Now". Há ainda grandes documentários, como "Corações e Mentes", de Peter Davis, e "Noite e Nevoeiro", de Alain Resnais. Há também muitos grandes livros sobre a guerra, como "Os Sertões", de Euclides da Cunha, "Matadouro 5", do Vonnegut, ou "Ardil 22", do Joseph Heller. Mas duas das mais comoventes narrativas sobre a guerra que conheço não foram feitas nem pelo cinema, nem pela literatura, mas pelos quadrinhos.

Maus, de Art Spiegelman, ganhou todos os prêmios que um quadrinho pode ganhar e mais alguns que quadrinho algum havia ganho, como o Pulitzer. Conta a história de Vladek Spiegelman, pai do narrador, um sobrevivente de Auschvitz, como o Josué de "A Vida é Bela". Só que em Maus a imagem não congela num sorriso final, a mãe não resiste bravamente a dor e os americanos não parecem saídos de um anúncio de dentifrício. Em Maus os judeus são ratos, os nazistas gatos, os americanos são cães, os poloneses porcos e os franceses sapos. E todos parecem pessoas muito reais. A guerra termina, o pai sobrevive e a vida continua. E é aí que começam os problemas.

Gen (pronuncia-se "guem"), de Keiji Nakazawa, é também a história de uma criança que sobreviveu à insanidade, só que do outro lado, em Hiroshima. Lendo Gen você mergulha nos horrores da guerra, no cotidiano da miséria e da fome. E só quando já está perplexo pela capacidade que seres humanos têm de impingir sofrimento a outros seres humanos é que você lembra que uma bomba atômica está prestes a cair. Gen já virou filme, animação e ópera. Vendeu milhões de exemplares em todo o mundo, foi o primeiro quadrinho japonês lançado nos Estados Unidos. Também é uma tragédia contada pelo ponto de vista de uma criança, como em "Central do Brasil". Só que aqui os adultos maus não ficam bonzinhos. Eles continuam maus até o fim. Alguns pioram.

Felizmente não existe um Oscar dos quadrinhos e você não precisa escolher entre um ou outro, pode ler os dois, e em português. Maus foi lançado em 87 pela Brasiliense, em dois volumes. Gen foi lançado agora, pela Conrad. Os dois estão disponíveis nas boas casas do ramo, como a Planeta Proibido, ali na Riachuelo. Ao contrário da imensa maioria dos filmes disponíveis nas salas ou locadoras da cidade, Maus e Gen são obras de arte, impregnadas do que o ser humano pode fazer de melhor. E de pior. Vão estragar seu dia, eu garanto. Não perca.

para saber mais sobre...

Maus, de Art Spiegelman

Gen, de Keiji Nakasawa