Mister "Bitter" Bierce e a Revolução da Degola
por Francisco Ribeiro
 
 
O arquétipo é bastante conhecido: um jornalista, gringo, chega a um país semi-bárbaro para fazer reportagens sobre uma revolução. Conhece os chefes, despreza os motivos, e - antes, durante, e depois do conflito - tem tempo para aventuras amorosas e amizades insólitas. Este roteiro, ainda não filmado, poderia ser tirado do último livro do historiador Décio Freitas, O homem que inventou a ditadura no Brasil (Sulina, 220 páginas, 20 paus), um painel sobre a Revolução Federalista (1893-1895). Se o título da obra se refere a Júlio de Castilhos, paira, no seu interior, a figura do lendário jornalista e escritor americano Ambrose "bitter” Bierce, correspondente em Buenos Aires, no final do século passado, do jornal Tribune, de Nova Iorque, para o qual teria escrito artigos sobre a Revolução da Degola.

Freitas chegou ao jornalista quando, ao pesquisar matérias sobre o conflito em jornais platinos, encontrou, transcrito para o espanhol, no La Prensa, de Buenos Aires, um artigo de um certo A. Bierce. A descoberta levou o historiador à coleção do Tribune, na biblioteca de Nova Iorque. Mais, aos 62 cadernos que Bierce escreveu sobre sua temporada na América do Sul, 18 dos quais dedicados as suas aventuras no Rio Grande do Sul, abordando principalmente a guerra civil. E aí, em Nova Iorque, também o primeiro enigma: impossível saber, com exatidão, se o A. era de Ambrose. Os biógrafos não falam sobre a estada de Bierce no Rio Grande do Sul. O que, segundo Freitas, também não prova que não esteve. Mas isso é papo de historiador e Freitas intui que seja mesmo Ambrose Bierce pelo estilo da prosa, misantropa até a medula.

Quando chega a Porto Alegre, Bierce tem 50 anos e é veterano da Guerra de Secessão americana, onde serviu como voluntário no exército da União. Também foi correspondente em Londres, onde ganhou o apelido de “bitter”. Em junho de 1892 manda, via telégrafo, as seguintes informações (resumo):

Começa a dança da guerra. E, em meio aos preparativos, Bierce mostra um interessante panorama da Porto Alegre dos primeiros anos da era republicana. A cidade, ainda com aspectos de burgo colonial, fede a lixo e excrementos. Epidemias grassam. Senhoras ainda são transportadas por cadeirinhas. Perfumes não escondem o mau cheiro das pessoas. À noite, em sórdidos becos, "chinas" de 12 anos, ao som de acordeonas, fornicam por vinténs em catres de lona, enquanto no casebre ao lado, também sob a luz de um toco de vela, meninos de dez anos praticam sodomia com "cavalheiros distintos".

Mas a cidade, que segundo Bierce pratica a "estética da fealdade", também não é só amargura.Tem 20 consulados. Um ar cosmopolita, pois está cheia de estrangeiros: além do português, fala-se espanhol, italiano, francês, alemão. E, para a sua surpresa, pode comprar, em uma livraria da esquina, o Pall Mall Gazette, de Londres. Há muitos espetáculos no Theatro São Pedro, e as orquestras dos cafés tocam polcas, mazurcas, valsas, scottish e quadrilhas. Bierce também gostava de perambular até a casa de Apolinário Porto Alegre, no alto do Morro Santana, para discutir política, literatura, e depois comer churrasco e beber leite, provavelmente numa guampa. Também somos informados, na página 96, que, "como sempre acontecia quando dormia sem mulher Bierce masturbou-se antes de pegar no sono". Isto, claro, antes de comer a mulher do cônsul americano.

Também não escapou a mister Bierce "a inverossímil beleza do lago sobre o qual se debruçava a cidade". A mesma beleza que se percebe hoje, do 14º andar de um prédio na avenida Independência, onde fica o apartamento de Décio Freitas. Aos 76 anos, sabe que, com o  O homem que inventou a ditadura no Brasil, colocou a mão num vespeiro. Não se questiona um mito impunemente. E Freitas, a partir da Revolução Federalista e da vitória do Castilhismo, faz um elo de ligação  de uma herança que passa por Getúlio,
golpe de 64, e chega até os dias de hoje. Levou pau de tudo quanto foi lado, com a serenidade de quem sabe não ser o dono da verdade. O trabalho do historiador não é imparcial, pois seleciona , interpreta documentos e constrói sua própria versão. E nisso estão embutidos valores ideológicos. E a Revolução Federalista, por si só, já é um vespeiro: egalistas( chimangos), federalistas (maragatos); republicanos, seccionistas, monarquistas; o envolvimento do Uruguai e da Argentina, como asilo e também fornecendo combatentes para os dois lados. Muitos interesses, barbárie com milhares de mortos, degolas, e o prazer de matar.

A guerra civil gaúcha serve como prelúdio do que Bierce voltaria a encontrar na Revolução Mexicana. Esta participação inspirou o filme "Old gringo", de Luiz Puenzo, com Gregory Peck interpretando o jornalista. Bierce desaparece durante o conflito, em 1914. O que fez aumentar ainda mais a sua lenda. Teria morrido, ou, cheirando sangue do outro lado do Atlântico, corrido para a grande carnificina da Primeira Guerra Mundial? Será que existe, hoje, um Bierce, na guerra dos Bálcãs?

Bierce sobrevive na Internet, onde há varíos sites a seu respeito, inclusive um retrato. E, traduzido para o espanhol, trechos do seu "Dicionário Diabólico". Vale conferir.
 
 
Francisco Ribeiro
fcorib@mandic.com.br
 



Há uma biografia de Ambrose Bierce em hipertexto em http://www.keele.ac.uk/depts/as/Literature/Bierce/forked.html. E o Dicionário diabólico de Bierce está em http://www.geocities.com/SoHo/Cafe/1131/bierce.html. Vá lá mas volte para o...