500 anos do Brasil na mídia, de todos os lados, e sinto uma imensa necessidade de levar a sério o Giba e esse país, e arriscar algumas linhas sobre a pátria, cá no meu cantinho, sem violão e sem corcovado: tão somente com as ilusões de um Brasil no compasso brasileiro.
 
 
Saudade do Brasil
por Marcelo Fleury
 
 
Ouso falar do Brasil, sabendo que não é coisa fácil. Mas deixo claro que o Brasil que escolho eu para falar é somente um, entre tantos que por aí há, tão diversos e distintos como somos nós, brasileiros. Esse Brasil de que falo não é só meu, espero, mas digo "meu" Brasil porque pensar no significado dele me remete à infância, lugar onde ele ficou por muito tempo, como os dois degredados da expedição de Cabral que, deixados em terra quando a esquadra partia rumo à canela das Indias, puseram-se a chorar e a implorar que fossem levados juntos. O meu Brasil que eu acreditava e até desfrutava, era como um degredado que de tempos em tempos se fazia ouvir, de tão alto que berrava. Certo dó me fez trazê-lo de volta à realidade, mas sempre por breves instantes; tão breves quanto o brevíssimo tempo entre os choques que a realidade nos dá.

Sendo assim, trago esse Brasil para a realidade, aproveitando esse breve instante. E torço que não seja assim tão breve o momento, chamando Vinícius, lá de longe, para fazer parte desse país, e dizer calmamente, entre um uísque e outro: que seja infinito enquanto dure! Pois que assim seja, poeta; e que dure tanto quanto você na nossa lembrança: para sempre! Porque o meu Brasil é romântico, e deliciosamente preguiçoso. Ele é o Brasil de Vinícius e de suas paixões. O Brasil dos amores, como só o Brasil sabe ser. É o Brasil da poesia de viver. O Brasil do poetinha e de seu parceiro e amigo querido, companheiro de tantas canções viajadas e, sabe-se lá, tantas ainda a viajar. É o Brasil de um Tom Brasileiro, de Ipanema, na rua Nascimento Silva 107, onde Tom ensinava à Elizete as canções de Canção do Amor Demais. Lembra que tempo feliz, ai que saudade, Ipanema era só felicidade, era como se o amor doesse em paz. Esse é o meu Brasil que pede a bênção ao poeta e ao maestro, e que só anda trôpego quando volta de uma festa às cinco da matina, ajudando os passarinhos a acordar as pessoas, cantarolando Chega de Saudade pelas ruas do Bom Fim. O Brasil do amor, do sorriso e da flor.

Mas também é o Brasil do boteco, e da cerveja no lugar do uísque. É o Brasil de uma boa média que não seja requentada, um pão bem quente com manteiga à beça, um guardanapo e um copo d’água bem gelada. É o Brasil de Noel, de Cartola, de Pixinguinha, de Lupicínio... O país da reunião descompromissada em volta da mesa de bar, empilhando bolachas e discutindo a vida. Da dor de cotovelo bem doída e compartilhada com um amigo e uma garrafa de qualquer coisa. O Brasil dos amores brasileiros.

E não só o país do samba, mas também o país do samba. E do samba verdadeiro, sussurrado ou retumbante, mas genuinamente brasileiro. De quem faz samba, de quem gosta de samba, e sobretudo, de quem samba. Porque o meu país é feito de samba, como o morro: de samba pra gente sambar. É feito do choro de um cavaquinho solitário, ao qual vem unir-se pouco depois um reco-reco, uma cuíca, um pandeiro e um tamborim. É o Brasil do partido alto, de um Deus gozador, que adora brincadeira, pois pra me botar no mundo tinha o mundo inteiro, mas achou muito engraçado me botar cabreiro, na barriga da miséria - e eu nasci brasileiro.

Brasil do sertão; da contemplação, desde uma rede, da vastidão de verde e rios, com um gosto de pamonha na boca. O Brasil onde se pode ser livre como em nenhum outro lugar, para celebrar a vida, a natureza, e para sentir na carne e no espírito o cheiro e o gosto dessa terra abençoada brasileira.

É o Brasilzão de meu Deus, vasto, imenso, gigantesco. Do céu, sol e da estrada mundo afora, do Oiapoque ao Chuí. De sentir o vento bater no rosto, indo de canto a canto, do vanerão ao baião, em chão de terra ou não, pelos bailes da vida, parando aqui e ali, para um arroz com feijão. Um Brasil sem limites, onde em cada ponto, dos infinitos que são, se descobre um pouco mais de um sentimento tão profundo, tão sincero e tão inexplicável, que outra coisa não resta fazer senão parar o carro, o ônibus ou o caminhão e chorar convulsivamente pelo que se sente e pelo que se sabe, não haverá como explicar.

Esse é o Brasil de todos os santos, todas as crenças, todas as raças. O Brasil da explosão do gol no Grenal; da cachaça com Tang no carnaval; da celebração pela celebração. Da vida, afinal, no que há de melhor. Porque outra terra não há onde se possa viver tão intensamente. É o Brasil do oceano, mar azul, verde ou chocolatão; da praia, seja em Búzios, Jericoacoara ou Capão; do sol com sabor de sol e de verão.

É o Brasil de Gilberto Freyre e Darcy Ribeiro. É esse Brasil brasileiro, novo povo, nova Roma tardia e tropical. Civilização mais alegre, porque mais sofrida. Melhor, porque incorpora em si mais humanidades. Mais generosa, porque aberta à convivência com todas as raças e todas as culturas e porque assentada na mais bela e luminosa província da Terra.

O Brasil, na verdade, é um filme a se fazer, onde não pode faltar a imagem aérea de um caminhão solitário rasgando o país entre árvores, morros e casebres simples, ao som da voz de Milton Nascimento e nem o Cristo Redentor e a Baía de Guanabara, ao amanhecer, ao som da solitária cuíca, em tom de ressaca de carnaval. Porque o Brasil é total. Norte, sul, leste, oeste. É pampa e floresta, litoral e sertão. É variedade, diversidade e felicidade esse meu Brasil. Pindorama infinita, terra brasilis de tupiniquins e tupinambás; negros, pardos, mulatos e mestiços; brancos e loiras. Esse é o meu Brasil.

Findo o breve instante, preparo-me para um novo choque com a realidade, que vem acelerada na minha direção. A verdade dói, a realidade machuca. Choco-me com ela novamente. Ai! O Brasil é o Toninho, o Bigode e a Carla Perez. É o bóia-fria tomando umas biritas para espantar a tristeza e sonhando com bife à cavalo e batata-frita. É a miséria e o sonho de ser o Turcomenistão (Jorge Furtado, Não 62). Volta o meu Brasil para os confins da minha memória, e adormece contrariado antes de um novo grito. O Brasil ideal eu vivi na infância, porque acreditava nele. Hoje acredito cada vez menos, e portanto, vivo cada vez menos ele. De tempos em tempos, porém, permito que venha à tona por um instante. E aproveito o momento para vivê-lo intensamente, iludido. Reinando a realidade, resta-me sonhar com o próximo momento, esperando que dure um pouco mais. Coloco um disco do Tom Jobim e viajo ao som de Saudade do Brasil, imaginando o vôo de um Urubu-Jereba no meio de tantas saudades.
 
 
Marcelo Fleury
marcelo@opensite.com.br
 


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