"A Trapaça", de David Mamet

Por Álvaro Opperman

          Para usar um eufemismo, "A Trapaça" (The Spanish Prisoner, 1998, direção de David Mamet) fez uma carreira discreta em Porto Alegre. Ficou uma semana em cartaz e teve má acolhida do público, apesar da simpatia dos críticos. Má acolhida do público é outro eufemismo: no jornal Zero Hora, a nota média dada pelo leitor ao filme foi zero vírgula dois. Nem o último filme do Christopher Lambert conseguiu tal proeza.

          É uma pena, pois trata-se de um dos filmes mais instigantes desse primeiro semestre do ano. Em linhas gerais, "A Trapaça" conta um caso de espionagem industrial. Joe Ross (Campbell Scott), funcionário do segundo escalão de uma companhia, desenvolve uma fórmula secreta imprescindível para sobrepujar a concorrência no novo cenário comercial do mundo globalizado. O valor da fórmula é imediatamente reconhecido por seus superiores. Sem estar ciente, no entanto, é envolvido num jogo de aparências que tem o propósito de tirar a fórmula de suas mãos. Isto é o máximo que se pode dizer em termos concretos sem estragar as surpresas que aguardam o espectador.

          David Mamet aborda de maneira original um dos temas caros a Alfred Hitchcock, o do homem comum jogado numa situação acima de sua compreensão, e utiliza um dos expedientes narrativos clássicos do mestre do suspense para fazê-lo: o McGuffin. O "McGuffin" é um artifício. É o pretexto para contar uma história. Em Intriga Internacional, por exemplo, um microfilme desencadeia a perseguição ao personagem de Cary Grant. O que ele contém? Não interessa. A Hitchcock, o drama humano na tela é o que realmente importa.

          A fórmula inventada pelo personagem de Campbell Scott, chamada vagamente ao longo do filme de "o processo", é o McGuffin de Mamet. A própria ambientação do filme é um grande McGuffin (a companhia sem nome; o diretor, conhecido somente como Mr. Klein; a natureza desconhecida dos negócios), o que dá ao filme um clima onírico fascinante. Esse clima é ressaltado pela interpretação irrepreensível dos atores, pela fotografia sombria de Gabriel Beristain e pela música de Carter Burwell (compositor da trilha sonora de Fargo, dos Irmãos Coen). Um dos destaques do filme é Steve Martin, na pele do fantasmagórico Jimmy Dell, um milionário que trava amizade com Joe Ross com o propósito de se apossar da fórmula. A primeira parte do filme mostra a manipulação sofrida pelo personagem de Campbell Scott nas mãos de Jimmy Dell.

          Mamet utiliza com maestria o princípio hitchcockiano do McGuffin para ressaltar, por trás da história bastante convencional do filme, o grande tema de "A Trapaça", exibir os mecanismos de manipulação psicológica e a conseqüente dissolução da consciência da vítima nas mãos do manipulador. O filme o faz com grande habilidade, na forma da relação entre Joe Ross e Jimmy Dell. Para conquistar primeiro a admiração, depois a intimidade e finalmente a confiança irrestrita de Ross, Jimmy Dell usa o expediente típico do sedutor, que é o de fomentar a vaidade e as fantasias da vítima (emprego a palavra "sedução" no sentido restrito de sua origem, sub ducere, conduzir por baixo). Uma tática muito mais sofisticada, aquela que desorienta Ross e que o prostra sob o domínio mental de Dell, é a das reações contraditórias que o personagem de Steve Martin emprega, ora demonstrando afeto, ora rejeitando o patético personagem de Scott. Para quem viu, ou quer ver, o filme, isso é mostrado na cena do encontro dos dois na loja de automóveis de luxo.

          O personagem sutil e bem delineado de Campbell Scott, brilhante tecnicamente, ambicioso, mas psicologica e afetivamente frágil, é uma representação característica do homem contemporâneo. A situação em que se encontra também é típica do século XX, o século por excelência da manipulação psíquica (controle de opinião, engenharia comportamental, programação neurolingüística, propaganda subliminar e lavagem cerebral).

          O desfecho da história decepciona em seu convencionalismo. Agentes do Estado armam uma cilada para os vilões e restabelecem a ordem. Existe nele, no entanto, algo de perturbador. A frieza e o cinismo dos agentes deixa implícita a idéia de que não se trata do triunfo do bem sobre o mal, mas a vitória do mais esperto e do mais poderoso. No fim das contas, o welfare state é igual ao outro lado. Só que mais forte.