Bruna

Por Guttemberg Lopes*

Voltando para casa, depois de mais um dia de trabalho, para amenizar a brutalidade de uma viagem de ônibus tarifa C, leio a Identidade, de Milan Kundera. E tudo vai bem: todos os passageiros estão relativamente confortáveis em seus assentos, o ônibus está vazio, o motorista não é dos mais loucos: pára nos pontos e não dá freadas tão bruscas, o assalto, se eu tiver sorte, não será anunciado e se eu dormir, acordo antes de passar do ponto.

A leitura do romance, ambientado em Paris e Londres, precisa ser interrompido por um episódio que já faz parte do cotidiano carioca. Niguém mais se escandaliza. Uma menina maltrapilha, descalça, não mais de dez anos de idade, começa a distribuir uns bilhetinhos com o texto, que transcrevo, a seguir, ipsis litteris:

"Peço pelo amor de deus uma ajuda para comprar arroz e feijão para meus irmãos menor que são seis e não tenho pai só mãe e o emprego esta dificil porque eu sou menor aqueles que puderem me ajudar eu agradeço muito aceito vale e ticke obrigado."

Assim mesmo. O único ponto é o final. É R$ 1,00 e ponto final. Tentei iniciar uma conversa, mas sem sucesso. A única coisa que descobri foi o seu nome. Bruna precisava ser rápida, atrás vinha outro ônibus. E quem sabe nele alguém mais generoso.

Alguns passageiros, sem perceber a fragilidade estampada nos olhos da menina, rejeitam o papelzinho. Estão vacinados pelos telejornais, que não perdem a oportunidade de apresentar casos de velhinhas oportunistas, que suas produções, esbaforidas, descobrem, no meio da multidão de miseráveis que enchem as capitais brasileiras.

Como Bruna, centenas ou milhares de pessoas, perambulam pela cidade, saltando de ônibus em ônibus, tentando a sobrevivência, o pão de cada dia.

(A estratégia é quase sempre a mesma. Alguns distribuem uma guloseima qualquer junto com um bilhete, outros só o bilhete e há aqueles que nem bilhete nem balinha, vão na garganta mesmo, começando com o "sen-ho-ras e sen-ho-res" de sempre. Já vi, nessa situação, um menino que tinha acabado de aprender a falar e um velho que quase não conseguia se equilibrar, dada a fraqueza de seu corpo senil).

Bruna desce. Mas antes disso o ônibus passa em frente ao MAM, onde nesse dia estavam expostas "obras" do Caribe, Brasil e Europa. Quase foi possível ouvir parte do discurso de uma famosa estátua, criada no seio da inteligentsia tupiniquim – peça rara, preço altíssimo - , vociferando que a demanda dos pobres no Brasil é por aprender inglês e ter acesso a internet.

*gutlopes@hotmail.com

Guttemberg Aguiar Lopes, 31 anos, jornalista, nasceu em Duque de Caxias, Rio de Janeiro.

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