Para o Brasil, para sempre.
Jorge Furtado 18/11/99, 10:58
 
 
 
Uma maneira muito eficiente de aprender algo sobre um grupo social é analisar seus códigos de conduta. Nas leis e códigos penais de cada época ou lugar dá para descobrir quase tudo que o pessoal andava fazendo e não devia. Um estudo clássico sobre o tema é "O Processo Civilizacional", de Norbert Elias, onde ele analisa as transformações sociais a partir de manuais de etiqueta. Pelas Ordenações da Corte de Braunschweig escritas em 1589, por exemplo, fica proibido a qualquer um, "antes de, depois de ou entre as refeições, tarde ou cedo, sujar os degraus das escadas com urina ou outra imundície". Ninguém ia pensar em escrever uma coisa destas se não tivesse alguém mijando na escada.

Para conhecer os hábitos do Brasil Império nada melhor que ler as "Ordenações Filipinas", o código penal promulgado por Felipe I em 1603 que vigorou no Brasil até 1830. Foi publicado este ano, pela Companhia de Letras, organizado por Silvia Hunold Lara. Alguns dos 143 artigos: "Dos que benzem cães ou bichos sem autoridade del-rei"; "Dos que dormem com suas parentas e afins"; "Dos que molham o pão que vendem" (para aumentar o peso); "Dos que compram colmeias para matar as abelhas" (para usar só a cera); "Dos mexeriqueiros"; "Das cartas difamatórias". As penas mais graves, como a destinada aos "que cometem pecado de sodomia e com animais", são "que morra por isso, queimado e feito por fogo em pó, para que nunca de seu corpo e sepultura possa haver memória, e todos o seus bens sejam confiscados. Seus filhos e netos ficarão infames". Não sei se a punição para a cabrita era a mesma.

O artigo mais estranho é o 45, parágrafo 5: "defendemos que nenhuma pessoa feche portas algumas por fora contra a vontade de seus donos ou sem o eles saberem; e o que o contrário fizer, se for peão, seja açoitado publicamente; sendo de maior condição, será degredado dois anos para a África". Pelo jeito havia algum gaiato em Lisboa fechando as portas pelo lado de fora, talvez com o sórdido propósito de atrasar o pessoal para pegar os melhores lugares na missa.

As punições também revelam muito sobre o imaginário português da época. Muitas penas de morte são seguidas de variadas atrocidades, como queima do corpo e esquartejamento, como se isso fizesse alguma diferença para o morto. E o pior degredo possível era para o Brasil. Crimes menores terminavam em cinco anos na África, crimes graves em cinco anos no Brasil e, para os gravíssimos, a pena era a nossa: para o Brasil, para sempre.

Pois o governo FHC está lançando hoje, depois de cinco anos de gafes e grosserias, o seu código mínimo de boas maneiras. Chama-se "Código de Conduta dos Titulares de Cargos na Alta Administração Federal" e foi elaborado por juristas a pedido do presidente. Parece que a motivação imediata teria sido a declaração pública de ACM de que os combustíveis não iriam mais subir este ano, manchete de vários jornais na semana passada. ACM já manda no país faz tempo mas, depois desta, FHC ficou com medo que ele começasse a sugerir penteados para a Dona Ruth e pediu o código.

As penas são aplicáveis pelo próprio presidente e vão desde recomendações amigáveis até demissões com cara feia. Fica proibido (Seção 2, artigo 3, parágrafo primeiro) "dar, explícita ou implicitamente, tratamento preferencial a quem quer que seja, por interesse ou sentimento pessoal". O presidente agora não pode mais usar seu prestígio para favorecer grupos privados em leilões de estatais, por exemplo. Ótima idéia. O parágrafo segundo do mesmo artigo proíbe "valer-se, em proveito próprio ou de terceiros, de informação privilegiada, ainda que após o seu desligamento do cargo". Não vale mais ser presidente do Banco do Central de segunda a quinta e sócio de corretora na sexta. Também não vale mais levar a família de jatinho da FAB para Fernando de Noronha, "simular a transferência de bens", receber "presentes e gestos costumeiros de cortesia e hospitalidade" de valor superior "a um salário mínimo", "opinar publicamente sobre a honorabilidade e o desempenho funcional de outras autoridades" ou "utilizar-se, antes de se tornarem oficialmente públicas e em benefício próprio e de terceiros, de informações obtidas no exercício do cargo". Parece que não tem ninguém sujando a escada em Brasília.