Melhor de Dois

por Bela Figueiredo

 

Cara, tu não gosta de ninguém e tá sempre correndo atrás do prejuízo. É muito crítico, comedido no quesito atitude. No tempo mesmo, sereno, solúvel, encantador. Só que tu sempre some e aparece só pra esvaziar. Ah, esses caras que usam demais o penso... o outro pê preterido.

Triste isso. Tá dizendo que eu tô amarga? Pensa o que tu quiser. Não consegui tirar o porta-retrato de cima da escrivaninha. Teu lábio apertado na foto, cara de enfarado e eu com um sorrisinho trouxa. Meu braço em voltado teu pescoço. Assim sempre estive para ti: pendurada, à mão.

Bonitinho, esse teu nariz de cera. Dá vontade de morder. Sem contar o coração lavado bem de leve com uma esponjinha, assim, devagar, pra não fazer cicatriz. Sempre amei essas perebas da tua testa e a canela curta debochando do resto do corpo. Tu deve ter vertigens aí de cima... Pra matar é essa passada de mão na cabeça descendo da nuca às costas com destreza.

Isso sim me põe louca! Tá, eu sei que tu é atraente até por ser feio e tu usa muito bem o mau aspecto. Engodo. Sempre gostei dos lesados. É... se Deus está nos detalhes, tenho os teus todos no meu winchester.

Tu cativa, mais cara, não vale à pena passar pela vida desse jeito - se agarrando à qualquer impressão, se tingindo em nesgas de salvação. Não há nada. Nenhuma. E o pior: a que está perto de ser o teu graveto de salvação (a tábua afundou faz tempo) tu nem aí... Porra! não percebe, não alcança esse olhar que demora em cima de ti o tempo todo, te pondo nu na multidão.

Paguei a última prestação da TV. Pode levar, não me importo. Também não quero os CDs, só a coleção de conchas. As fotos, querendo, leva. Não posso mais te ver. Tu mudou muito. Não é mais o cara bacana que eu conheci naquele reveillón lá na Guarda. Tua cabeça, agora, te integra aos imbecis e nada! fora a masturbação intelectual - mal dos pseudo-cultos - que não se acabam nunca, jamás! Só a punheta infinita, loooonga, imensa. A bronha das palavras e a delícia de se agarrar, olho revirado, braço tremendo, unha fincada na carne, ah... essa nada.

Põe o Gold do ABBA. A onze. Não, cara. Não foi por tédio. Não vem com essa de falta de imaginação. Tu sabe que não foi pasmaceira porque eu fiz muito por nós. Nesse tempo de crise, agarrei minhas coisinhas, sumi. Fui pra casa da mãe chorar. Te deixei 'avaliar' e andar por aí com umazinhas de chicotinho e salto alto. Quando tu prendeu o grito, mansinha, voltei. Vesti só um par de meias brancas cobrindo os joelhos. Gritei! Também soube falar baixinho.

Te dei uma ikebana. Telefonei no meio da tarde pra fazer surpresinha. Burra. Idiota. Tentei telepatia. Mandei fax, grudei bilhete no interfone. Fiz simpatia, quatrocentos pensamentos positivos, pedi a Deus, desejei profundo (quase sacudi o mundo), mail... merda! Será que o resto todo era a fórmula?

Melhor ficar amargando frustração, certo? Errado. Eu aqui com uma bola vermelha bem na ponta do nariz, peruca de caracóis azuis, calça de bolinha, o sapato dez números maior que o pé. É isso? A palhaça, a boba da corte, espera tonta dentro das suas calças um sinal de "vinde a mim, babá/vinde a mim neném". Nem mão, beijo ou perninha, enrosco, corpos, sangue, vísceras, saliva e suor. Nadinha. Da dupla sobraram as pessoas jurídicas: carnês, papéis, carimbos e a tua cueca pendurada na torneira do chuveiro.

Tu é muito vaselina, cara. Nem sabe o motivo, se é que há. Não vai. Não pode e fica me phodendo com esse ph retórico. Ah, a retórica... fôda-se a retórica! Eu disse a onze, meu. Não a nove. (FF>>) Valeu. Sabe o que eu queria até agora? Não vou ficar olhando pra tua bunda. Faz o favor de olhar pra mim. Obrigada. Queria ser carregada a reboque pra qualquer lugar. Tanto faz pântano, serra, mangue, mar, Marte... Tudo bem.

Não deu. Tu ficou de pau murcho. Vai mesmo rodar na ciranda descompassada do mundo, tomara eunuco. Não te divido com nem mais meia criatura. Te quero castrado quando longe. Sei, sei... sou egoísta e no amor pós-moderno a tendência é o livre, right? No meu não. Nesse aqui que inventei, duras penas, tuas canelas só encostam nas minhas. Nada de 'foi sem querer' por debaixo da mesa. Amor livre e monogamia não andam de mãos dadas. Me alcança o cinzeiro? Vou, vou fumar de novo, por quê? Tá, eu acendo um incenso. Esse vapor te incomoda, o bafo todo, a coisa em si. Me passa a vinho? Tô em estado de ebulição. Duas velas rasgam o ar - aroma de mel e amêndoa. Sim, temos agora a fossa, mas e aquele vínculo, o vício do início de comover, cadê?

De filme aquela cena da gente jogando crapô pelados na sala. Também o crepúsculo na beira da praia. A massagem nas costas e barriga - agachar de prazer. Nunca vou esquecer da gente lá no Vieira. Aquela piranha platinada esfregando os peitos na tua cara e tu nem aí... Pedia que eu tirasse a camisa do colo, lembra? Tu dizia: 'não precisa tapar a barriga. Tu é linda'! E a vez do carvão? Essa tu esqueceu, garanto. Eu te pintei pro carnaval. Não queria que ninguém te visse. Só eu. E a gente deitado na esteira? Aquela foi ótima. Umas cervejinhas mais o sol te fazendo crer nos astros... Como tu gostava de se exibir na beira da praia. Mal sabia que a tua pança escrota era motivo de chacota do povo. Boa mesmo foi quando tu pintou as unhas dos meus pés de marrom e disse que tinha posto lantejoulas na ponta dos meus dedos. Ah, o fetiche... Vários! Essa parte foi. Se esvaiu, uma pena. Agora a gente fica aqui mirando alvos inatingíveis numa guerra fria de ataques aéreos.

Não. Não quero dançar. Não tenho vontade. Tô com sono. Vou ficar deitada. Não adianta olhar pela janela. Tu não vai achar asilo, enfim, coisalguma lá fora. Tá aqui ó, bem no meio dessa sala o que vai acabar. Não vou fazer mais nenhum verso nem beijar teu olho de manhã cedo. Sim, a avenca secou. Não, nunca mais reguei. Não tem mais mãozinha na nuca nem ginástica pra pélvis. Não te dou mais uns pegas do meu cigarro. Tô, tô egoísta sim.

Não posso mais, querido. Se te incomoda, acende a luz, então. Não, não me importo. Tudo bem. Acende. Viu, cara, tu não tem clima. Bate a porta quando sair.

FINISH

BelaF

'Às vezes a gente pensa que está dizendo bobagens e está fazendo poesia'.

[Quintana]

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