Arquivochis
por El Comanchero
 
 
Raul caminhava em direção ao bar de sempre. O dono o estava esperando com sua Pepsi doce e várias doses de vodka. O velho e bom samba. Raul não vivia sem seus sambas. Quem disse que ele não gostava de coisas nacionais? Vodka com Pepsi é uma instituição nacional dos bêbados. E não venham com raifais e porcarias féchion de frescos e suas répi auars afetadas. Répi auar é papo de classe média deslumbrada. Neguinho toma é cachaça. Toma porre para esquecer que é pobre. Enche a cara. Afunda a cabeça num copo. Gênio. Da garrafa. Pobre só é gênio quando sai de uma. Mas vocês não são pobres. Vocês têm internet e sabem falar inglês. Realizaram os sonhos de todos os brasileiros. Sortudos. Raul sempre falou inglês, mas morreu antes da internet sair dos meios acadêmicos e militares. Talvez ele nem gostasse de participar disso. Mas o samba era seu café da manhã. Seu alimento. A destruição de seu fígado. A aniquilação do pâncreas que já estava pela metade.

Raul saiu do bar pensando em tudo isso, em Carl Perkins e seus sapatos azuis, no programa sem graça do Chico Anísio, em quanto ainda restava do seu cérebro. Quanto?

Uma luz forte surgiu na sua frente. Luzes verdes e amarelas. Um som estridente e alucinante em seus ouvidos. Um solo do Slayer. Guitarras do inferno. Tridentes. Pentagramas. Raul desmaiou. Quando acordou, com a visão ainda embaçada, enxergou um homem na sua frente. Era Elvis. Elvis falou, em inglês, é óbvio, mas eu transcrevo em português, porque o meu inglês é um pouquinho melhor que o do Scarface do Al Pacino:

- Raul, acorda! Acorda, cara!

- E-e-e-elvis ... é você mesmo. Cara?

- Claro!

- Onde é que eu tô?

- Não ti preocupa. Nós tamo numa nave espacial. Voando para Júpiter.

- Pra Júpiter. Por que Júpiter?

- Seilá, cara, pergunta praqueles dois, ali, ó! Apontando o dedo para dois macacos com roupas militares.

- Quem são eles?

- Um é o Charlton. O outro é o Heston. Eles vieram nos salvar do apocalipse.

- Apocalipse, que merda. E eu nem fechei a conta no bar. Mas, me diz, por que nós?

- Eu não sei. Não sei nem quem enterraram no meu lugar. Acho que foi o Paul.

- Que Paul? O McCartney?

- Ah, deixa de ser burro, Raul. O Paul morreu, aquele cara que tá lá agora é um robô fabricado na Turquia por uma empresa alemã. Não vê que ele só grava merda?

- É, depois da trilha do James Bond tudo é possível.

- Ih, o Marlon Brando, também.

- Morreu?

- Claro, aquele gordo é o verdadeiro Corleone. Marlon Brando foi assassinado pelo Charles Mason e a mãe do Axl Rose num ritual satânico numa cidadezinha da Georgia.

- Putz, que lixo, cara.

- E eu fiquei, aqui, com esses caras, faz mais de dez anos. Minha mulher tá lá, ganhando grana a dar com pau. Vendendo tudo que é meu. Mas, tudo bem, roquenrol forever.

- E o John?

- O John morreu. E foi um plano da CIA. Eles mataram ele só prá desviar a atenção de um acidente nuclear no Novo México.

- Puta merda, cara.

- É, mataram duas mil pessoas, incluindo dois brasileiros.

- Quem?

- Um deles era o Brizola, o outro eu não sei.

- Mas o Brizola é candidato a presidente. Tá vivo.

- Ãhn, será que eu me enganei? Não! É isso!  Me lembrei. O Brizola sobreviveu ao teste nuclear. Deixaram ele sair de lá só prá ver os efeitos da radiação. Dizem que ele tem o biotipo ideal de sobrevivente de ataques nucleares.

- Mas eu li que só as baratas sobrevivem.

- Ei, Charlton, falou Elvis para um dos macacos, quando chegaremos em Júpiter?

- Não interessa!, respondeu o macaco largando um urro e chutando o traseiro de Elvis com toda força. E senta ali, disse apontando para uma almofada de centro de sala com desenhos geométricos, imitações baratas da cultura tolteca. Ou asteca. Tanto faz.

Elvis sentou e calou a boca, Raul, amarrado numa cama branca no centro da nave, espirrou, e não conseguia limpar o nariz.

- Ei, limpem meu nariz.

- Calaboca, humano. Agora você vai ser usado, como todos os outros humanos, falou Heston. Sua mente nos interessa para descobrirmos como vocês pensam.

Arregaçou a manga da camisa de Raul e, usando um enorme agulhão, injetou um líquido laranja na sua veia.

- O que é isso?

- Tang.

- Não tem Pepsi?, perguntou Raul, antes de apagar.

O corpo de Raul não serviu para nada. O jogaram de volta, dois meses depois, no mesmo lugar onde o tinham capturado. Um mês antes, Raul tinha morrido. Dois corpos tinham ocupado o mesmo espaço-tempo. Elvis dormia em um canto de sala num apartamento da periferia de São Paulo. Foi enterrado como indigente. Raul abduzido, não o morto, foi visto embarcando em um ônibus para Campinas. Dizem que dá aulas de Química para vestibulandos. Charlton continua amando Heston. Os dois explodiram a nave espacial e abriram um restaurante temático para homossexuais (putos, bixas, fronhas, agasalha-croquetes, fritadores de sonhos, padeiros novos, bundeadores, etc.) no interior do Paraná. E Brizola continua correspondendo às expectativas dos cientistas norte-americanos. Sem prazo de validade.

E o apocalipse? Seilá, cara! Se o mundo acabar, que me interessa quando? Desde que me deixem os meus discos do Nirvana, o disquemem da Sony e uma caixa de Amor Carioca, o resto que se dane. Inclusive vocês.
 
 
El Comanchero,
um ermitão que não tem a resposta para nada. Nem quer ter.
crazyhorse@india.com  
 

NÃO 66