O rapaz e as uvas

de Clara Averbuck

Sua única ambição na vida era chegar até o banheiro daquela festa lotada. O corredor estava entupido de pessoas conversando animadamente, como se não estivessem bloqueando a passagem. Conversavam e uma ela jogava a cabeça pra trás com a mão no peito, gargalhando. Ah, que vontade de passar um facão no pescoço daquela bagaceira, quem ela achava que era pra tentar explodir sua bexiga daquela forma? Pescoçuda feia. Certas pessoas deveriam simplesmente ser extintas com uma arminha laser. Aliás, tudo que ele queria era ter um sabre de luz. Sim, porque sabres de luz cortam paredes - ele estava a alguns centímetros de concreto do banheiro -, e pescoços. Vamos liberar a passagem aí, bando de hippies.

Finalmente. Um litro, dois três, pschhhhh ahhhhh. Zuuuuit, zíper, botão, cinto. Porta.

Passou pra salinha ao lado, esperando encontrar alguém conhecido. Alguém.

- Taquipariu, não acredito, não pode ser essa mina! - Resmungou para seu umbigo. Mas era. Era sua ex-namorada, que nem namorada tinha sido. Sua ex-paixão de alguns anos atrás, da época em que escutava Skid Row e usava botas, de quem levara um belo pé na bunda, estava ali, toda clubber - ela, que falava mal de música eletrônica, que era heavyzinha - de cabelos vermelhos repletos de presilhas e roupas de material esquisito. Mas era bem o tipinho dela, fazer o que tempos atrás criticava. A última coisa que ouviu a respeito dela foi que havia se mudado pra São Paulo, morava com um indivíduo e trabalhava como modelo. Claro, modelo: magrela e perfeita como era, só podia ser modelo, mesmo. Decidiu passar reto, espiando com o canto do olho. Como ela estava de costas, não o viu. Filha da puta. Fazia quanto tempo? Cinco anos? Por aí. E ele ainda tinha palpitações quando a via, exatamente como acontecia naquela época. Ah, essas pessoas insuperáveis. Ela estava sentada com a irmã, irmã essa que ele já tinha cortejado, logo que levou o pé na bunda, sabe-se lá porquê. A irmã o viu, abanou, e ficou por isso mesmo. Sabia que ela não comentaria nada com a Mina, pelo simples motivo de que a Mina era completamente indiferente a ele. Não dava a mínima. Ele tinha sido mais um dos idiotas apaixonados por ela. Mais um, unzinho, dentre os setecentos e quarenta e oito que caíram de quatro por ela. Sim, claro, ela era inteligente, linda, alta, loira, com grandes seios, sobrancelhas arqueadas e senso de humor. Por que alguém não se apaixonaria por ela? Não existe homem que resista a isso. Até existe, mas deve ter sérios problemas de critério. Ela era perfeita, a vadia. E não estava nem aí.

Foi pra rua e sentou-se no meio-fio, com vontade de botar a cabeça de molho.

Amigos. Olá, amigos. Olá, pessoas. Não, não, estou bem. É, tomei algumas cervejas, não sei quantas, ei, não estou agitado, não tenho culpa que vocês fumam maconha e ficam em baixa rotação. Estou normal, vocês que estão lerdos. Ô meu saco, vi sim, vi que ela está aí. Separou-se, é? Legal. Não, não me viu. Escuta, como anda aquela banda que você me falou uma vez? Não estou mudando de assunto, nada, seu pentelho. Só lembrei que... Ah, vá sentar em uma toicera, eu vou buscar outra cerveja. Não enche. Lalala, passando pela mesa, lalala, do lado dela, lalala, ela nem olha, fiufurufufu, olhando pra cima, e tem um cara sexy dando em cima dela, lalala, parece o Ken da Barbie, que droga, poxa vida, ela realmente nem me viu, e se viu ignorou tacitamente, eu sou um fudido, um merda, essa mina nunca vai dar pra mim mesmo, não deu naquela época e não vai ser agora que vai dar, que coisa mais idiota, me sinto um perdedor, soy un perdedor. Calma, mané.

Passou novamente pelo maldito corredor apertado, chegou ao bar, pegou uma cerveja e sentou. Se sentia o último dos seres humanos. Mesmo que aquela moreninha uh de cabelos chanel não tirasse os olhos dele, mesmo que ele tivesse um trabalho perfeito, mesmo que soubesse que era um cara legal, sempre que a via, ficava resmungando pelos cantos. E ali estava, resmungando num canto.

O DJ colocou Beck, Loser, e todas as pessoas foram dançar. A grande conspiração. O DJ sabia. As pessoas sabiam. O taberneiro sabia. Aquele grupinho que ria no canto, ria dele. Não era paranóico, era tudo verdade. Um paranóico é quem tem uma vaga noção do que está acontecendo, já disse Burroughs. Ou será que foi Ginsberg? Um desses drogados aí. Mais uma cerveja. Outra. Sono. Já estava chegando a hora de dar uma deitadinha básica no sofá.

Deitou. Plef.

Dormiu.

Acordou.

Fuck, será que ela ainda está aqui?

Foi conferir. Passou pelo corredor-moedor-de-carne, olhou. As amigas, a irmã, estavam todas ali, menos ela e o Ken. Olhou no bar, na rua, na chuva, na fazenda. Nada.

Saiu. Sua casa era o único lugar onde seria aceito naquele estado. Até porque morava sozinho. Mãos nos bolsos, cigarro na boca. Pedrinhas no chão. Baratas. A Mina na calçada.

Epa, como assim, a Mina na calçada?

Atravessou a rua. Se recusava a vê-la sendo agarrada por aquele Ken cheio de tentáculos. Saída estratégica pela esquerda. Casa. Onanismo não era o fim do mundo, e pelo menos sua mão jamais seria abduzida pelo Ken. Chegou na frente do carro. Virou-se e olhou. Lá estava ela, toda linda, conversando pertinho do rapaz penteado. Pensou em voltar, passar bem na frente, oi, tudo bem, não tinha te visto, quanto tempo. Mas não. Não ia se submeter a essa situação ridícula. Se fosse pra falar com a Mina, ia FALAR com a Mina, que nem gente. E mostrar que não era mais aquele gurizote babaca. Que era grande, agora. Que tinha conceitos e opiniões formadas. Que era culto e tinha lido Ulisses. Que tinha cheques e salário. Que tinha uma casa e um aparelho de som e almofadas fofas no chão da sala. Que tinha dois cabelos no peito, Roberto e Renato.

Ah, Mina, sua vaca sacrílega, por que não ficou em São Paulo?

Mina olhou pra ele. Não, não era pra parede ou pro céu, era pra ele. Pudera, esteve tão absorto em seus pensamentos que não se deu conta que ficara virado, olhando Mina e o Ken como um estúpido, com a chave do carro na mão, no meio da rua, durante todo aquele tempo, que poderia ter sido um, dois, dez minutos. Não importava. Mina o vira, ele tinha certeza. Virou-se, entrou no carro e arrancou, sem olhar pra trás.