NOITE BRASILEIRA

Por Miguel da Costa Franco
 

 
Não imagino que horas seriam. Bebêramos muito e rodávamos pela cidade, ao léu, na madrugada silenciosa.

Antônia ria-se muito e deixava-me acariciar-lhe as coxas, libertas agora da proteção pomposa da saia cinza de tweed. Éramos quatro. Saul e Carmecita, no banco da frente do Aero Willys, discutiam aos berros sobre a justeza ou não de ela encarregar-se do trabalho doméstico caso ele sustentasse a casa. Avançadinha, ela era. Por vezes imploravam nosso apoio e Antônia os enxotava:

- Cada um, cada um, já dizia Teixeirinha.

E me dava uma lambida na orelha, um beijo no pescoço ou corria os dedos finos sob a minha camisa até o mamilo intumescido. Eu devolvia-lhe os agrados. Parecíamos, agora, velhos namorados. Ainda há pouco - umas parcas horas – conversávamos distantes, frouxamente desinteressados um do outro. Uns goles mais e a madrugada fria, um olhar mais longo e o sexo possível, algo assim aos poucos afastou as restrições primeiras. Eu não gostava dela: pose excessiva, nada na cabeça. Parecia-me falsa, escorregadia. Muito pouco transparente e isso me perturba nas pessoas. Critérios à parte, agora acariciava-lhe os seios delicados, beijava-lhe o pescoço. Quando o carro parou, já se desvendava o segredo da calcinha.

Milicos por toda a parte. Antônia afastou minha mão subversiva e puxou a saia. Escondeu os seios - como eram lindos! - sob o blusão escuro e depois ajudou-me com os botões da camisa. Eu estava gelado.

- Saia de ré - sugeri para Saul, autoritário.

Ele respondeu que era bobagem, uns segundinhos e pronto, estava liberada a rua. Sim, um deles lhe falara, eu não vira? Por que ficar tão nervoso?

- Não gosto disso - respondi.

E as gurias riam, troçavam, como eu era bobo, tão comum uma batida na madrugada. Mas Carmencita estava nervosa, vi por sua risada meio histérica. E Antônia piscava muito, ria, acendeu um cigarro pelo filtro.

Os homens corriam, agrupavam-se, sumiam na esquina da ruela estreita. Outros soldados haviam fechado a rua também atrás de nós. Por que nos trancam?,pensei, o que estarão escondendo?, que burrice nos trancar aqui!

- Documentos, documentos! Algum menor? - perguntou um.

Não havia menor. Levaram as carteiras de identidade, os documentos do carro, a carteira de motorista de Saul. Os outros soldados olhavam para a transversal. Alguma coisa acontecia lá. Estavam nervosos. Um oficial gesticulava, histérico e afobado. Quando desci do carro, eles não perceberam. Antônia me disse:

- Fica.

Saul gritou meu nome. Um soldado correu em minha direção e falou:
 

- Que merda é essa? Vai pra dentro, anda - e me empurrava.

Um tenente, o único com um olhar mais humano, aconselhou-me a entrar e ao bater a porta sugeriu que eu agüentasse mais um pouco, tudo sairia bem. Então eu soube definitivamente que algo estranho se passaria ali e me deu um nó no peito, uma dor de estar ali a bolinar Antônia enquanto o mundo vinha abaixo, a milicada torturando, gente morrendo de graça. Um Brasil soturno mais além do outro, oficialmente belo e promissor. Foi então que eu vi o carro passar em disparada pela fresta da esquina, vi que haviam armas e no banco de trás parecia haver alguém meio caído. Por instantes, a rua me pareceu vazia. Estávamos nós ali, mas nós não éramos nada. Quis sair, mas meu corpo estava mole, boneco de pano, marionete, um fantoche tresnoitado e agabundo.

Voltou o tenente com os nossos papéis e seus olhos estavam trêmulos. Mandou manobrar por trás:

- Fora que a coisa aqui tá preta, fora, fora!

E Saul arrancou ligeiro, e as gurias riram, e Antônia reclamou alguma coisa sobre a chatice dessas barreiras, todo dia se topava alguma, e Carmencita disse que eles deviam ter algum motivo para fazer toda aquela zorra, e Saul justificou com algum subversivo e Carmencita desejou que prendessem logo todos. Estávamos perto já da Duque e eu pedi para descer. Antônia quis vir comigo e eu disse:

- Não, só quero andar.

Ela fez beicinho e eu bati a porta com ódio. Ouvi Carmencita comentar:

- Que cara estranho!

Fiquei ali até o amanhecer. Aos poucos, surgiram pessoas. O armazém da esquina abriu e uma janela mais adiante. Ouvi um motor, não sei onde, relutando para pegar. Clareou o dia e os passarinhos insolentes quebraram o luto da noite brasileira. Tocou um despertador bem perto e ouviu-se o trote cadenciado de um funcionário da limpeza pública, antecipando-se ao caminhão do lixo. Um clarim distante soprou excitado a alvorada de mais um dia normal.

Então chorei por meu país pela primeira vez.

Mas passou-se o tempo. Foi antes da guerra civil dos nossos dias. A morte, hoje, não se esconde mais.
 
 
Miguel da Costa Franco
mig@portoweb.com.br