DESLIGUE ESTE COMPUTADOR E VÁ LER UM LIVRO II
 
por Jorge Furtado 28/01/2000 19:10
 

Não sei se entendi a polêmica desta edição sobre, sobre o que mesmo? Bem, para que não digam que amoquequei-me, deixo claro que sou a favor de sexo, raramente por escrito, e contra a publicação de qualquer besteira que escrevam para o Não. Nas cartas, tudo bem, mas nos textos, não. A facilidade crescente de tornar público qualquer texto, filme, vídeo, desenho ou musiquinha, atrolha todos os espaços de lixo egolátrico. Cresce a importância do editores, teoricamente com bom senso para selecionar o que é de possível interesse público, por qualidade da forma ou importância do conteúdo ou ambos, e o que não passa daquele desejo íntimo e irrefreável de botar para fora uma coisa que está aqui dentro, entende? Ao contrário do que a mídia faz parecer, ninguém é obrigado a ter opiniões publicáveis sobre qualquer assunto. E, como disse o Rosa, "quem fala muito dá bom dia a cavalo".

Mas vamos ao que interessa: livros.

"Notícias do Planalto" (Mário Sérgio Conti, Companhia das Letras) é indispensável para quem quer conhecer a bandalheira que nos governa. Como bem observou o Fischer, o texto é uma fieira de fatos, as deduções ficam por conta do leitor. Qualquer brasileiro alfabetizado intui que as relações de promiscuidade entre políticos, empresários e imprensa são um ovo de alien na barriga da democracia. O livro de Mário Sérgio deixa a sensação de que o nosso futuro está sendo decidido, neste momento, por cretinos amorais em alguma mesa de restaurante, entre mordidas de aipo. Felizmente o livro também revela o trabalho de muitos bons jornalistas. Sem eles esse país já teria virado uma gigantesca Alagoas.

A Folha de São Paulo desancou o livro. Acusa o autor, entre outras coisas, de ter livrado a cara dos Marinho no episódio da edição do debate final entre Lula e Collor. Não concordo. Para mim o livro mostra claramente a interferência direta da direção da Globo para eleger o Collor, inclusive no episódio da reedição do debate para o Jornal Nacional. Alberico fez o que lhe mandaram fazer.

Também fiquei com a sensação de que Collor começou a cair pelo antagonismo entre Teresa e Rosane. As cunhadas se detestam, a família Malta passou do ponto no jantar de apresentação aos Collor de Melo e derrubou um biombo da sala de dona Leda. Um estilista carioca disse a Rosane que Teresa não pagou uma conta e o cacacazinho acabou em telefonemas desaforados. Teresa atiçou o marido e deu no que deu. Talvez o Brasil tenha se livrado da quadrilha por causa de um biombo e um carnê de butique, olha só.

"Notícias do Planalto" é também uma grande pesquisa sobre a imprensa brasileira, traz a história dos principais veículos de comunicação do país e de seus chefes de redação. Mário Sérgio as vezes exagera nos detalhes, contando que o editor da Veja em Brasília queria ser médico quando era criança, estas coisas. Mas isso não diminui a importância do livro e, como a ótima edição tem índice onomástico e cronologia, todo aquele material de pesquisa está agora disponível. Para quem gosta do gênero terror é diversão pura.

...

"Vida, o filme", (Companhia das Letras) do jornalista americano Neal Gabler, analisa o principal fenômeno sociológico do século XX, a indústria do entretenimento. A tese é que o entretenimento, especialmente através do cinema, da televisão e das revistas de celebridades, superou e moldou a realidade, transformando o homo sapiens no homo scaenicus.

A escalada do entretenimento nos Estados Unidos começou com a disputa presidencial, em 1828, entre John Quincy Adams, um intelectual, e Andrew Jackson, um "ríspido herói militar". Jackson venceu e inaugurou simbolicamente uma nova era, submergindo a aristocracia cultural americana e trazendo à tona as "forças do antiintelectualismo", com seus tablóides coloridos, romances e almanaques. O teatro popular e os tablóides levaram milhões de semi-analfabetos ao consumo do entretenimento. Os jornais substituíram os textos analíticos por manchetes e fotos cada vez maiores. Deu nisso que a gente conhece.

Esta revolução gráfica, como observou Daniel Boorstin, foi também uma revolução moral. Ao contrário do texto impresso, que exige raciocínio e poder de argumentação, que nos obriga a pensar "em termos de alguma idéia ou valor ao qual se pode aspirar", a profusão de imagens nos direciona "para o aqui e o agora, para algo imediatamente útil". As imagens substituem a aspiração pela gratificação. Esta civilização baseada na satisfação imediata dos desejos iria expandir em muito sua força com a chegada do cinema e, mais ainda, da televisão.

Nestas novas formas, amparadas na ilusão de realidade da imagem em movimento, o entretenimento assumiu uma força tão avassaladora que moldou a própria vida, a maneira como agimos, sentimos e pensamos. Os atores principais desta "vida-filme" são as celebridades, definidas por Boorstin como "pessoas conhecidas por serem famosas". Gabler analisa com detalhes o surgimento do culto às celebridades, principalmente através das revistas People e Vanity Fair. O livro só fala dos Estados Unidos, mas quem já viu a Caras entende tudo. O editor da People, Richard Stolley, estabeleceu as regras para uma boa capa: "jovem é melhor que velho; bonito é melhor que feio; rico é melhor que pobre; televisão é melhor que música; música é melhor que cinema; cinema é melhor que esportes; qualquer coisa é melhor que política; e nada é melhor que uma celebridade recentemente falecida".

Gabler faz uma ótima análise da função terapêutica das histórias, da necessidade humana de buscar "modelos de coerência narrativa num mundo de aparente anarquia". Olha só:

"Outrora esta função fora executada pela religião, que proporcionava o que um crítico chamou de "enredo final sagrado para organizar e explicar o mundo". A ideologia também teve esta função, ao nos deixar acreditar em algum fim último em direção ao qual a vida supostamente progredia.

"A verdade é que a primeira vista", escreveu José Ortega y Gasset, falando a respeito dos usos da ideologia, "a vida é um caos dentro do qual nos vemos perdidos. O indivíduo suspeita disso, mas tem muito medo de encarar essa verdade assustadora cara a cara, e por isso tenta ocultá-la com uma cortina de fantasia, por trás da qual pode fazer de conta que tudo está claro".

"Enquanto a religião e a ideologia prevaleceram não houve grande necessidade de outros enredos. Mas como tanto a religião quanto o dogma ideológico perderam forças com as arremetidas da vida moderna, o fardo de puxar a cortina da fantasia coube à cultura popular, sobretudo ao cinema. Se a vida era acabrunhante, sempre se podia esculpi-la numa história, como faziam os filmes. Podia-se vergar a vida até encaixá-la em fórmulas familiares e reconfortantes, como as que se viam na tela, e com isso domesticar-lhe os terrores."

Neal Gabler
Vida, o filme: como o entretenimento conquistou a realidade.

Jorge Furtado

DE VOLTA PRO NÃO 69