Sobre as revitalizações de áreas urbanas.

(ou como as coisas sempre são piores do que parecem)

 

André de Oliveira Torres Carrasco

(estudante do sexto ano de arquitetura e urbanismo - usp)

 

Este é um comentário a respeito do texto do vereador porto alegrense Adeli Sell, do Partido dos Trabalhadores, publicado no Cardoso On Line número 145. Não se trata, no entanto, de uma contestação absoluta das críticas e propostas desenvolvidas por ele. Antes disso, pretendo apenas chamar a atenção a respeito de alguns pontos relacionados ao tema, importantes para a viabilização de uma gestão democrática do espaço urbano de nossas cidades.

O vereador, no papel de presidente da comissão de economia da câmara, trazia à luz a necessidade de um projeto de recuperação e/ou revitalização de alguns edifícios e conjuntos urbanos tidos como referências culturais e históricas da cidade de Porto Alegre, dos quais ele destacou o centro da cidade e a orla do rio Guaíba. A necessidade da reformulação de alguns importantes equipamentos de infra estrutura urbana, como o Metrô, os barcos que realizam transporte através do rio e o estacionamento subterrâneo também foi lembrada pelo vereador.

À primeira vista, ótimas sugestões. Nada mais correto do que preservar o patrimônio histórico e cultural de uma cidade tão importante, para o Brasil e para o Rio Grande do Sul como Porto Alegre. Aliás, nada mais correto do que permitir tal investimento em qualquer cidade que eventualmente possua em seu tecido urbano marcas que revelem um pouco mais sobre a história de sua região ou de nosso país.

Além disso, estes projetos de "revitalização" vêm sendo propostos e realizados em todo o mundo com uma freqüência rara na história da arquitetura. Desde as grandes obras realizadas em Paris por Miterrand no início dos anos 80, passando pela construção das Docklands em Londres e pela Barcelona Olímpica, até os badalados Puerto Madero em Buenos Aires e o Projeto da Orla de Niterói, e os famigerados Eixo Tamanduateí e Maharishi Tower, em São Paulo nunca se viu tamanho interesse na recuperação dos centros urbanos associada a novas políticas ditas culturais.

Mas qual o objetivo de todos estes projetos afinal de contas? A resposta, semelhante para todos os casos: utilizar as obras e os novos equipamentos urbanos como meio de canalizar novos investimentos para as cidades em questão. Em Porto Alegre aparentemente não seria diferente. O próprio vereador parece assumir esta postura afirmando que "queremos uma capital para o Turismo" ou que "Porto Alegre se venderia para o mundo" após a conclusão de determinados projetos.

Mas agora cabe uma pergunta, apenas para tentar desfazer este consenso, aparentemente inabalável, criado em torno da suposta validade de projetos deste tipo: como estabelecer um programa de recuperação dos espaços degradados da cidade através de um processo socialmente justo?

Os leitores devem estar se perguntando o que vem a ser este "socialmente justo" e porque os projetos citados não atenderiam a esta definição.

Uma análise mais detalhada das intervenções que seguem este modelo, especialmente as comentadas anteriormente, levando em conta seu contexto econômico e social, o papel dos agentes públicos e privados envolvidos, as soluções arquitetônicas adotadas, a distribuição dos espaços e infra estrutura produzidos e as diferentes conseqüências para as diferentes camadas sociais da comunidade demonstram que todos estes projetos se sustentam sobre um tripé formado por:

O mecanismo de transferencia de capital é simples. O Estado entra com a maior parte dos recursos diretos e indiretos (isenções) necessários para a viabilização dos projetos. As empresas privadas assumem a gestão das obras e dos futuros equipamentos e consequentemente o lucro gerado por eles.

Lucro quase certo por sinal. Coincidentemente todos estes novos equipamentos urbanos nascem com o status de bens culturais. Atualmente nada vende mais do que a chamada "cultura" , que a muito perdeu seu caráter esclarecedor assumindo de vez o papel de um dos motores do capitalismo pós industrial. Basta observar o sucesso de "bienais", "mostras", "festivais" e publicações especializadas, qualquer que seja a forma de expressão em cartaz. E também observar que as pessoas saem destes eventos da mesma forma que entraram, um pouco diferente talvez pela camiseta, canequinha ou bonezinho comprado com muito gosto nas lojinhas estrategicamente localizadas dentro do circuito. E só para fechar o raciocínio, tentem se lembrar de algum museu, casa de cultura, teatro, etc, sem a tal lojinha carregada de bugigangas descoladas.

O mecanismo de exclusão social que acompanha estas novas políticas urbanas talvez seja o ponto de apoio mais perverso destes grandes projetos de recuperação da cidade.

Inicialmente devemos contestar o termo revitalização, expressão falsa, utilizada apenas como forma de legitimar tais projetos, garantindo-lhes uma imagem simpática perante a opinião pública. As áreas consideradas como "mortas" não passam de áreas urbanas abandonadas pelas classes média e alta durante os sucessivos ciclos econômicos por qual passou a cidade e ocupadas, por falta de opção, pelos cidadãos mais pobres. Existe sim "vida" nestas regiões, mas com certeza é um tipo de vida que o resto da cidade ainda prefere ignorar.

O processo de expulsão destes moradores das áreas que repentinamente passam a ter seu valor "cultural" aclamado está fundamentado na súbita alteração do valor da terra em questão. Se em um primeiro momento, as áreas desprezadas pelos ricos não possuíam valor no mercado imobiliário (e daí a tolerância com a permanência dos pobres), estas mesmas terras passam a valer muito em muito pouco tempo, em conseqüência dos investimento materiais recebidos e do tal valor "cultural" que ninguém sabe explicar direito qual é. A conseqüência é a expulsão dos moradores mais pobres destas áreas, que ocorre tanto pela força (a conhecida reintegração de posse) quanto pela incapacidade de arcar com os novos custos que a cidade lhes impõe (principalmente impostos e taxas) que chegam com as melhorias.

Diante deste quadro, podemos ter a impressão de que não há nada a fazer diante do processo de degradação que assola espaços importantes das cidades em que vivemos (no meu caso, São Paulo; no caso de vocês, Porto Alegre).

Aí está o engano. É possível um processo de recuperação urbana com justiça social desde que baseado em outras medidas que vão além de um belo projeto. O projeto arquitetônico é algo importante, mas deve apenas ser uma fração de um processo que tem o dever de possibilitar a democratização do acesso a terra e a infra estrutura urbana, distribuição da carga tributaria segundo a renda do proprietário, desvincular projetos urbanos da especulação imobiliária, não permitir a segregação espacial evitando a formação de regiões socialmente homogêneas e distribuir investimentos de acordo com as carências de cada região. Desta forma, a cidade iniciaria um ciclo de recuperação de seus espaços degradados, disponibilizando benefícios reais a todos os cidadão e de forma mais ampla e consistente.

Em relação a cidade de Porto Alegre, o vereador lança em seu texto importantes propostas neste sentido. A ocupação de edifícios abandonados e inacabados, a formalização do trabalhos dos ambulantes com a criação de espaços adequados para suas atividades, a marina pública, além das melhorias na infra estrutura de transporte e saneamento. O próprio orçamento participativo é uma conquista importantíssima para o desenvolvimento de uma nova forma de gestão da cidade, pois permite a distribuição dos recursos entre as regiões da cidade independentemente do mercado imobiliário, que tradicionalmente impõe ao poder público um plano de investimentos compatível com seus interesses.

Nos resta decidir qual a cidade que pretendemos construir para abrigar nossa comunidade. Seremos seduzidos por propostas que satisfazem todos nossos desejos de consumo e conforto, esquecendo-nos de quem sempre acaba sustentando estes benefícios? Ou tentaremos abrir mão deste privilégio em nome de um projeto de cidade onde todos os cidadãos, de qualquer renda ou posse, participem como protagonistas do processo. E fico com a segunda opção. Pensando bem, talvez a única opção.

Para quem quiser saber mais sobre o tema, indico os seguintes livros:

Metrópole na periferia do Capitalismo. Ermínia Maricato (São Paulo, ed. HUCITEC, 1996)

Urbanismo em fim de linha. Otília Beatriz Fiori Arantes. (São Paulo, EDUSP, 1998)

E o filme:

A Nuvem. Fernando Solanas. Argentina, 1998.