A REALIDADE FICCIONAL DO CINEMA IRANIANO

 

ANDRÉ MELLAGI

 

A produção iraniana das últimas décadas já se fez presente ao público brasileiro nas salas de cinema das principais cidades do país. Alguns autores já ganharam seu espaço nas mostras e reconhecimento com prêmios internacionais conquistados. Muito já se falou sobre a peculiaridade em se retirar do pouco o grandioso. Creio que para mim, este continua sendo o terreno fértil encontrado para brotar por entre a aridez de poucos recursos e a frugalidade das estórias o lirismo no seu mais potente viço. Pequenas epopéias se inscrevem na recuperação do dinheiro extraviado de uma menina que pediu à mãe para comprar um peixe dourado às comemorações do ano novo, como foi mostrado com O Balão Branco de Jafar Panahi. Uma ruptura irrompe do cotidiano impelindo às personagens envolvidas a se lançarem diante de provações, sejam aparentemente grandiosas ou não, porém de intensidade indiscutível. O cinema nunca deixou de dar voz às pequenas imagens cujos detalhes a fotografia expande suas mensagens gritantes mas latentes.

Se o cinema procura retratar momentos cruciais que despertam de uma ocasião corriqueira, o mesmo cinema não deixou de ser captado por suas próprias lentes, revelando nos bastidores a sua mágica da transformação da ilusão em realidade ou vice-versa. Uma trilogia do cineasta Abbas Kiarostami pode dar uma idéia deste espelhamento que o cinema faz de si: ambientados na mesma região, Onde Fica a Casa de meu Amigo?, Vida e Nada Mais (E a Vida Continua) e Através das Oliveiras reúnem-se num conjunto que, sem aviso prévio como a ocorrência de um terremoto, foi imposto pelas conseqüências da catástrofe e de todos os envolvidos neste acontecimento, os moradores e os realizadores dos filmes.

O primeiro, Onde Fica a Casa de meu Amigo? produzido em 1987, não há qualquer referência explícita a um diálogo com o cinema. Continua portanto a permitir eclodir de uma situação dramática que surge por entre as brechas da vida ordinária questões que tratam por exemplo da confiança com o outro, seus obstáculos e auxílios, proximidades e afastamentos, etc. A estória parece por demasiado banal para retratar estas questões: um menino leva o caderno de seu amigo por engano e quer devolver a ele para evitar que o professor o puna com a expulsão da escola. Sai à procura da casa dele, enfrentando as vicissitudes de um lugar desconhecido e distante com várias personagens que acabam fazendo parte desta procura solitária do protagonista do filme. As pessoas que encontra na sua trilha, a inospitalidade do lugar e do tempo, forçam a enfrentar uma posição ignorada até então.

Anos mais tarde, um acontecimento trágico faz com que o diretor deste filme retorne à mesma região. Atacada por um terremoto, milhares de pessoas que lá vivem são vitimadas. Assim começa o filme seguinte da trilogia, Vida e Nada Mais (E a Vida Continua) de 1992, onde o diretor, acompanhado de seu filho, procura saber das pessoas que participaram da estória anterior, se estavam vivas ou não. Esta procura se dificulta com os efeitos da destruição retratada nas casas demolidas, nas estradas interditadas e na repercussão que o tremor, sentido ou não na pele, ainda reverbera em cada um. Boa parte do filme se passa na busca de um caminho viável para Poshteh, cenário de Onde Fica a Casa de meu Amigo?. Aqui se trava o diálogo com os transeuntes a respeito do menino que participou deste filme. Mostrando o cartaz com a sua foto, muitos o conheciam por ser morador da região que se celebrizou com a rodagem da película. Pergunta a um morador que se casou recentemente sobre os danos ocorridos pelo incidente e sabe que há muitas vítimas entre seus parentes. O jovem rapaz alerta a sua mulher que seja mais cuidadosa ao regar as plantas, pois molhava o visitante. Outros desabrigados num acampamento lutam para que uma antena parabólica funcione para ser transmitido o jogo da copa do mundo entre Brasil e Argentina. Em meio à desolação do terremoto, o espetáculo tanto do futebol quanto do cinema ainda guarda esta estranha necessidade que, dadas suas disponibilidades, convive com outras demandas mais emergenciais reclamadas pelas situações de extrema carência.

A trilogia termina com Através das Oliveiras de 1994. A interferência do cinema com a realidade é explicitada com as filmagens de uma estória no local do desastre. Esta estória é Vida e Nada Mais e o que se apresenta são os bastidores do elenco que compõe uma trama paralela. Os atores locais são escolhidos e o take filmado é o episódio em que o cineasta conversa com o morador recém-casado e é molhado pela mulher deste. Num dos ganchos mais interessantes já realizados, a cena quase documental do relato das mortes dos parentes e do casamento apressado mostrados em Vida e Nada Mais é agora ensaiada repetidas vezes pelos atores que tentam se ajustar às exigências do script. Entre os intervalos da filmagem, um romance entre os atores se desenlaça e constitui o enredo de Através das Oliveiras.

Da busca pela casa do amigo, esta parte pela busca dos atores após o terremoto. As personagens de Koker e Poshteh comentam suas perdas, alternam os papéis. Lá, todos procuram pelos seus pertences que sobraram, pelos cemitérios onde derramarão o pranto aos parentes mortos. O casal sobrevivente inicia uma nova vida como atores e namorados. O cinema e o futebol rivalizam atenções.

Podemos observar outros interlocutores deste diálogo como a cena final de Gosto de Cereja também de Kiarostami, quando o set de filmagem aparece após o esforço do suicida em se enterrar no meio da chuva ou em Um Instante de Inocência e Salve o Cinema, ambos de Mohsen Makhmalbaf. Estes dois últimos interligam-se durante a escolha de atores para participarem de um filme a ser rodado, mas o que os candidatos não sabem é que os testes constituem a própria estória de Salve o Cinema, onde o fascínio pelo cinema é demonstrado por diversas maneiras. Centenas de pessoas se debatem para conseguir uma inscrição para o teste. A cada um o diretor indaga a respeito do interesse pelo cinema e quais os motivos que levaram a seguir a carreira de ator. Para conseguir o papel, ordena-lhes que chorem em poucos segundos. Muitos fracassam, outros tentam encontrar algum subterfúgio para explicar a dificuldade em chorar numa ocasião artificial. As máscaras utilizadas no cinema são viradas do avesso neste teste em que cada um declara seu amor às artes que fazem parte do espetáculo cinematográfico. Um dos candidatos que se apresenta, mas que não aparece no filme, é um ex-guarda do Xá da Pérsia que o diretor havia esfaqueado na época de sua luta contra o governo durante a revolução islâmica de 1979 no Irã. Daí surgiu a idéia do cineasta em filmar o episódio do esfaqueamento em Um Instante de Inocência, fazendo parte da trama a procura dos atores para os papéis vividos pelo diretor e pelo guarda, transparecendo os conflitos vividos por ambos na montagem de suas personagens e no passado que deveriam exumar, reavaliando seus significados.

Esta vertente do cinema iraniano chama multidões a exporem suas fantasias em frente às câmeras, encarnando a ficção que vêem nas telas, ao mesmo tempo que faz das ações e fatos reais seu material para um filme. Estas passagens aparecem amalgamadas numa única obra, a volta de meninas à sociedade que durante anos ficaram encarceradas em casa pela família, e descobrem o mundo externo que contracena este encontro (A Maçã, de Samira Makhmalbaf). A realidade impele ao registro que se transubstancia em ficção. A direção pede que, tal um lance de dados, o mundo ao redor indique as seqüências a serem filmadas. Porém, isto não significa uma ordem aleatória e tampouco fugidia da linha de um roteiro. A criação reveste-se de todo o trompe l’oil (imitação, montagem, encenação), ainda que emprestados do material nativo do lugar do drama (atores locais ou protagonistas verdadeiros da trama, fatos ocorridos) para contar sua estória paralela ao documento do real.

O que aparece é um cinema que solicita constantemente o real para construir seu imaginário, da mesma forma em que este aparece imiscuído por entre o cotidiano das pessoas. Muitos críticos já apontaram influências do realismo italiano nas obras de Kiarostami, por exemplo. Porém, este realismo não se limita a fazer uma história verossímil, realçando as dificuldades por onde passam as personagens de alguma época histórica. O realismo continua com uma história fictícia, embora queira aproximá-la de uma situação concreta. O "realismo iraniano" empresta suas câmeras à realidade, torna-as co-diretora e coadjuvante com a estória. E o cinema também ofereceu si mesmo para ser gravado em plena ação.

O encontro do espetáculo cinematográfico com o documentário, da ficção com a realidade, pode ser ampliado em Close-Up, filme de Kiarostami de 1990. Um caso policial inusitado chamou a atenção do cineasta para que ele fosse atrás dos envolvidos na ocorrência: um homem que se fez passar por Mohsen Makhmalbaf conseguiu ganhar a confiança de uma família para então freqüentar sua casa com a promessa de utilizá-la como locação de filmagens e de chamar seus moradores a participarem de um filme. A farsa é descoberta e o suposto Makhmalbaf é preso. A equipe de Kiarostami vai até a prisão e conversa com o farsante. Este confessa seu fascínio pelo cinema, que fez tudo isso por admiração das obras de Makhmalbaf. Em seguida o diretor pede autorização ao juiz que presidirá o caso para filmar o julgamento. Durante o tribunal, o cinema tem uma participação direta nas ações que decorrem na sessão, o diretor faz perguntas ao acusado complementando as interrogações do juiz. O autor da fraude esclarece que os filmes de Makhmalbaf dizem respeito a sua condição de pobre e desempregado e que sua vontade era ser um diretor de cinema. Kiarostami interpela se ele já não estava exercendo o papel de si mesmo. A confirmação é evidenciada com as cenas do primeiro encontro com os membros da família e da sua prisão, filmadas com os agentes reais que repetem o ocorrido.

Apesar das invenções recentes da indústria do entretenimento e da comunicação, como a internet e a TV a cabo, neste século que finda o cinema desponta como a expressão artística que mais mobilizou as massas, dada a novidade de sua criação e a atração provocada pelas fotografias cinéticas que ao longo do tempo foram aprimorando e ganhando outras técnicas. A sua influência é percebida sempre que cai na boca do povo alguma película que traz interesse. O que os iranianos muitas vezes fazem é sugerir uma discussão em torno do poder do cinema, sua capacidade de tocar multidões. Por vezes devastadores ou consoladores, seu efeito e seu fazer são registrados para que se ponha em pauta esta nova produção em meio às outras artes.

Assim é que, com sua capacidade de registrar o mundo ao redor das lentes e ao mesmo tempo recriar este mundo sob sua vontade, o verdadeiro e o falso convivem num dos mais antigos debates sobre a função da arte, como por exemplo sua postura de resgate da vida concreta e o trabalho que em cima dela se faz para adentrar ainda mais na sua verdade. Através da recomposição dos elementos dados, a aproximação do contingente do mundo externo com a intenção do artista é feita de maneira a oferecer um novo olhar, mágico no entanto imanente ao que vemos. O verdadeiro e o falso Makhmalbaf saem de moto carregando flores, o cinema pede aos acontecimentos da vida o seu material e a permissão para que faça sob outros olhos sua gravação, focalizando os aspectos que fogem do mero registro testemunhal.