Ética de Sinaleira

ou

Devaneios sobre o comportamento humano depois de um quase atropelamento

 

Lafaiete Rosinsky

 

Esperar em cruzamentos é um saco. Na verdade, esperar é uma merda, provavelmente porque as nossas vidas atualmente estão tão mecanizadas, coisificadas pelo sistema capitalista de produção que nossa vida se resume a uma sucessão de esperas menores que nos ocupam o tempo, assim não ficamos vidrados na grande espera da morte. Esperamos a hora do almoço, o fim do dia, o fim da semana, o salário no fim do mês, as folgas no fim do ano, as férias, e quando estamos desempregados esperamos em filas monstruosas e em gincanas desumanas a oportunidade de esperar tudo isso. Mas de tanto esperar em sinaleiras, principalmente aquelas irritantes geringonças de três tempos que devem ter um padrão de troca codificado em sânscrito pelos gênios da EPTC e da SMT, a gente vai divagando e, se aproveitar o momento, pode até ter umas sacadas interessantes, um vislumbre de um microcosmo de relações humanas, de uma ética murrinha que está impregnada nas nossas ações cotidianas de gente civilizada e bem pensante desta Capital de melhor qualidade de vida do Brasil. Dia desses, por exemplo, ao cruzar aquele sinal devagarzão da Lima e Silva com a Perimetral, quase fui alçado às alturas por um Vectra azul marinho que, ao perceber que o sinal mudara de amarelo para vermelho alguns segundos antes que ele pudesse chegar á faixa de retenção, acelerou de forma absurda para imprimir velocidade e passar, desconsiderando o obstáculo inoportuno que eu era. Num primeiro momento tomei um cagaço, mas não me mexi, levado pela impressão idiota que a gente sempre tem nesses casos de que o carro também vai tentar virar para desviar e a probabilidade de ambos virarmos para o mesmo lado é de mais de 50%, não importa o que diga um estatístico. Aí me dei conta de que, pelo contrário, ele NÂO ESTAVA tentando virar. Pulei de volta pro lado do canteiro central e o carro passou por cima do meu pé. Quebrei três dedos e a planta do pé foi quase esmagada. A dor de ossos quebrados já valeria outro artigo, mas o que eu ia contar é outra coisa. O carro passou, como queria, e não parou, não soube dele e nem me liguei no momento de memorizar a placa. Aqui da minha janela de quinto andar em outro cruzamento, com o pé encerrado em uma incômoda e pinicante bota de gesso, eu me dei conta observando o meu próprio cruzamento que o tipo de padrão usado pelo filho da puta sacana que quase me esbodegou naquela sinaleira não é de forma alguma raro. Pelo contrário, é normal.

Saca só, o filho da puta apressado atrás do volante, quando percebe que o sinal está mudando para o amarelo - em muitos casos até já mudou para o vermelho - o motorista acelera o que pode, mesmo que haja um pedestre à sua frente, um babaca a pé apenas, insignficante obstáculo a atrasar seu compromisso inadiável para o qual tem pressa - todo mundo tem pressa hoje em dia, mesmo com tanta espera nesse mundo. Não importa para o sujeito atrás do volante o alvo a pé. Ele só quer atravessar o mais rápido possivel para não ser atingido na lateral pelo carro da rua transversal que vai estar começando a se movimentar agora que o sinal dele abriu. O pedestre que se foda, ele que desvie e saia da frente, e se não sair jamais estará em condições de provocar danos físicos signficativos contra o sujeito na armadura sobre rodas. Ele só se detem no momento em que há uma força oposta em ação com poder o bastante para prejudica-lo e mesmo destrui-lo. É isso aí, todo um sistema ético em um cruzamento fudido com sinaleiras de eterno vermelho e padrão inindentificável. É essa a nossa realidade de cada dia, gente. ALguém estará sempre pronto para passar por cima do primeiro otário à sua frente desde que tenha íntima convicção de que não há uma força maior com capacidade para dete-lo. Uma poética do prejuízo individual, uma teogonia do individualismo de resultados. Meu interesse maior é não me foder, e se eu souber que posso arrebentar alguém sem pagar por isso eu o reduzirei a pedaços. Ele é mais fraco, mais lento e está no meu caminho, então pediu pra se fuder. No fim, é apenas a proteção pessoal de interesses natural e previsível neste mundo em que o filhadaputismo cínico é a doutrina moral pragmática de maior sucesso. Depois de pensar isso pela milésima vez sobre este cruzamento do qual tenho uma visão de quinto andar, observando a mudança que não ocorre e vendo pedestres como eu exercendo suas pequenas e mesquinhas esperas cotidianas, acho que não é ttão difícil imaginar porque todos estão se destruindo lá fora. Bertrand Russell via a moral, a idéia de moral, a idéia de limite, como um dos conceitos que ajudaram a humanidade. nosso sinal vermelho. Mas se nossa preocupação primária é não ser abalroado, ficamos no vazio. Ética da retribuição, ética morfética.

Ou talvez isso seja apenas a dor, e o gesso que coça.