Minha Cara Jornalista
por Ariela Boaventura

Notícia exclusiva. É o que à primeira vista pode-se entender ao ler a reportagem realizada pela revista Caros Amigos de maio, uma verdadeira novela, para não dizer folhetim (sem querer reduzir o trabalho dos colegas) em pleno fulgor do século XXI. Prostituição do governo e da mídia, um caso que pode render apartamentos mais confortáveis, como consta, até anunciantes para uma publicação.

É preciso olhar com cuidado isso.

Por um lado, está o presidente do Brasil, representado pela imagem do presidente Fernando Henrique Cardoso, homem que, a princípio, não há nenhum fato, e eu disse fato, que o desonre perante a opinião pública. Eu disse a opinião pública, não um nicho de mercado, ou de leitores. Por outro reverso, a mídia, senhora da verdade em primeira instância até que se prove o contrário. Até por que é ela , a mídia, quem divulga quem prova o contrário e em que página isso irá figurar.

Ora, bem, o caso é de coçar a cabeça. Simplesmente no final de 1988, a repórter Miriam Dutra, jornalista de política da Rede Globo que trabalhava em Brasília, e que provavelmente cobria o que acontecia no Congresso Nacional, como consta na reportagem, teve um romance com o presidente da República. Não é coisa pouca, mas ela não é Monica Lewinski. A História não se repete, disse Hegel.

O presidente, sempre conforme Caros Amigos, quando soube da gravidez da "amante", para usar um termo da época flaubertiana, e soube pela própria, chutou ar-condicionado, xingou-a e a expulsou da sala. Até aí, não meto a colher. O problema não é também a sua suposta recusa de responsabilidade sobre a gravidez de Miriam. O bebê, um garoto, nasceu em 1991, sendo registrado somente com o sobrenome da mãe, Thomás Dutra Schmidt. Os fuxicos de casal não interessam para o jornalismo, ou pelo menos não deveriam. Acontece, e aí é que a porca torce o rabo, que a mídia - e isso se compreende como a maior parte das redações do País, como O Estado de São Paulo, Folha, Correio Braziliense, O Globo, a editora Abril, Zero Hora, entre outras não citadas pela reportagem, mas que votaram junto no silêncio - leva a culpa, o tronco, a cruz e a meia arrastão.

As prostitutas, como se sabe, vendem sexo. A mídia, informação; o vendedor da esquina, secos e molhados. A diferença entre uma profissão e outra é a ética. Existem manuais e filósofos às pampas para explicar a ética de cada redação, por isso não vou me deter no assunto. De acordo com a Lei de Imprensa, não importa quem anda dormindo com quem na política, tampouco na imprensa e muito menos no apartamento de cima, para o jornalismo, a não ser que a ação tenha ônus social. Por que não noticiou-se o caso de Miriam antes também não interessa. Mas caberia aqui um cisco: por que o silêncio, o mutismo dos meios de comunicação em uníssono, exatamente numa época em que o então candidato à presidência da República, José Inácio Lula da Silva, foi crucificado?

Esse é o ponto assinalado, o cerne da reportagem da Caros Amigos: um caso do presidente da República amarfanhado no silêncio.

Esse artigo aqui - que não se entenda como um libelo à revista -, porém, foi escrito para perguntar, finalmente: o caso do presidente pode ser visto como fato jornalístico, ser digno de pauta e de investigação por uma revista tida como séria? Não seria o romance coisa de alçada de publicações mais afetas a fofocas? por que a revista publica essa informação e por que há aquele maldito, sim, maldito, parágrafo dedo-duro:

"- Eles (o governo) acham que vocês estão fazendo uma matéria escandalosa envolvendo o presidente. Eu acho que não é o caso, pois, conhecendo vocês, eu acho que não iriam por essa linha de sensacionalismo barato."
– Ih, não é nada disso. Os caras pra variar estão mal-informados. A reportagem não é sobre a vida de FHC, mas sim sobre a relação da mídia com FHC, o silêncio cúmplice, essas coisas..." (diálogo por telefone entre um deputado federal e o editor especial da revista, José Arbex Jr.)

Não digo que a revista esteja a subestimar a inteligência dos colegas, pois isso seria, além de pedante, sugerir que o veículo estaria se direcionando para o sensacionalismo, o que o parágrafo acima nega. Porém, assim como a manchete espalhafatosa "Por que a imprensa esconde o filho de 8 anos de FHC com a jornalista da Globo?", o parágrafo que justifica a reportagem seria desnecessário, caso a notícia justificasse sua própria existência. Ora, em toda campanha eleitoral há informações preciosas que servem de munição para marketing. Se o caso era até então de ignorância pública, é porque a equipe de marketing político do PT não achou que isso fosse de interesse público, à época das duas eleições presidenciais que o Brasil teve, ao longo de quase uma década. A mídia tem a função de noticiar quando algo acontece. No episódio do romance, há uma intimidade a ser preservada e um filho não-reconhecido que até agora não veio ao microfone berrar sua existência: ao contrário, uma revista foi atrás, no melhor estilo jornalismo marrom inglês.

Caros Amigos aponta pressões, caretas e ameaças de corte na publicidade. Até aí, não existe nenhum motivo plausível para que a sua "reportagem-bomba" não saia. Deveria existir, isso sim, um cuidado com a legislação, com a ética e com o próprio bom jornalismo. Faltou à matéria o gancho da atualidade, interesse humano amplo e interesse social. Além disso, feriu a lei, que garante o direito à intimidade de todos os cidadãos brasileiros.

Eu já ia esquecendo: a reportagem toda começou por um artigo. Não existem provas, e a própria Miriam foge de declarações. Fato?
O fato é que Miriam mora hoje em Barcelona, e parece não ter nada para reclamar.
E que o fato de um suposto caso de presidente da República vende muita revista.

Volta ao Não 71