Troquei minha mulher por um PC 386
por Ariela Boaventura

Vivo há um bom tempo cercado por aranhas.

Tudo começou com um livro de Vitor Ramil, Pequod. História emaranhada em teias e narrativa como que um sonho. Talvez eu esteja a sonhar e ainda não tenha aberto os olhos; ou eu esteja com eles arregalados, mas a realidade então é sonho. Não sei, não sei. Mas como dizia, as aranhas me rodeiam desde essa época. Depois do livro, e isso faz pouco mais de seis anos, veio a época dos gibis. Comprava tudo quanto era coisa sobre o Homem Aranha. Depois de ter cartazes espalhados pela casa com o homem-aracnídeo em poses e bocas, abandonei a idéia assim como ela surgiu. Obsessões.

Essa chatice já termina, calma. Daí, prometo ir ao ponto, ao cerne da teia. Fiz uma faxina em minha casa. Retirei todas as teias dos cantos, deixei tudo uma beleza. Então, dormi.

Acordei hoje. Um coma repentino, coisa rara, dizem, pois pode tornar o ser vegetativo para toda a vida, ou pode durar apenas dias. Foi logo depois da limpeza, depois de espirrar feito um porco durante meia hora, pois tenho rinite alérgica, senti como que uma pontada - não no peito, mas na cabeça. Caí.

Devo ter ficado assim, estatelado, por dias. Ainda bem que era verão, pois se o caso tivesse ocorrido no inverno, eu não estaria aqui para contar essa história.

O sistema está aí pra isso mesmo: como não apareci no trabalho por mais de uma semana e sem dar nenhuma justificativa, acabaram por tentar contato. A zeladora diz que me encontrou em posição fetal, de calções e nada mais, junto ao vaso sanitário; uma baba branca escorrendo da boca.

A princípio, os médicos acharam que tentei suicídio, devido à baba. Após me examinarem, porém, droga alguma acharam no sangue, e fui para uma Unidade de Terapia Intensiva da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, de onde saí hoje. De presente de minha mãe, ganhei um livro intitulado "A noite de todas as noites", de Walter Santos. Ao abrir o pacote, quase caí de novo, dessa vez pelo susto: na capa sintética, desenhada em alto relevo, uma enorme aranha. A cara de um homem com um enxame de rugas me fitava em segundo plano.

A teia se fecha, as histórias se bifurcam, escorrem feito baba, para dentro de um sonho.

O coma me desatualizou; um déficit de seis anos me separou do contato com o mundo, com as pessoas. Tempo é vida, movimento de existir. Fora um amigo que outro, a maioria das pessoas que conhecia nem sei onde foram parar. Ninguém sabe explicar direito o que aconteceu com minha cabeça após a faxina no apartamento. Talvez eu seja epiléptico, mas nada ficou provado apenas pela saliva. É evidente que exames foram feitos, eletroencefalogramas, raios-X, orações. Minha tia foi a um babalorixá que falou, através do espírito de meu avô, que uma aranha havia me picado. Pode ser que estivesse correto, afinal, metáforas são um modo de explicar o inexplicável. O que sei é que com as mulheres sempre tive sucesso, ou relativo sucesso. O que é ter sucesso com uma mulher? se é firmar o olhar, hipnotizar, conversar e em questão de pouco tempo trepar com a presa, sou um sucesso absoluto. Mas nem as transas rápidas nem espíritos de avôs me impressionam. Poderia ter todas as mulheres que quisesse, dentro de meu contexto cultural e econômico. Acontece que naquela tarde de faxina, enquanto pensava na minha fase de manias por aranhas e no quanto as aranhas se aproximavam de certa maneira com a pessoa que eu amava, tive quem sabe uma picada de aracnídeo, sim. Ela havia partido na noite anterior, alegando que não poderia prosseguir numa relação sem elos, que precisava de um elã, de fios, de sentir-se como num casulo. Mas principalmente - esse foi o ponto mais forte de sua argumentação, enquanto beliscava um salgadinho junto à cama, junto com uma taça de vinho -, que não suportava mais ficar com um homem que passava uma tarde ou uma noite inteira sem lhe dar atenção, sem largar que fosse um segundo durante mais de horas a fio aquele maldito 386 que eu havia comprado.

Sim, eu havia comprado um computador do modelo 386 há alguns meses, e estava repleto de trabalhos para entregar. Trabalhava com produção de textos para um jornal da cidade, e ganhava por lauda. A verdade é que uma máquina não enche tanto o saco como a tua mulher. Ao contrário de te exigir atenção, suga docemente teus olhos e cérebro. E ajuda a ganhar uma grana. Além do mais, diverte e instrui.

Foi por isso que brigamos aquela noite, se não me engano era 31 de março de 1991. Eu disse que sim, havia trocado ela por um computador, que minha vida estava uma bagunça e que precisava pagar o aluguel antes de pensar em brincar de casinha. Que ela era ótima, mas às vezes me torrava a paciência com questões existenciais de personagens da novela das oito. Machista? objetivo e realista. Era uma megera, mas eu a amava. E no outro dia, para esquecer o cheiro dela, limpei a casa, tive um troço e desmaiei, entrei em coma, perdi seis anos de vida e cá estou eu, lúcido ou louco nem eu mais sei, se é que algum dia soube, o que importa é que eu disse que trocaria ela pelo 386, sim.

Mas era mentira.

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