Depoimento 38029-P Anexo 22 - Ministério da Defesa
por Marcelo Benvenutti

Eu nasci em 1970. Foi entre a morte do Jimi Hendrix e a da Janis Joplin. Não que interesse a vocês uma informação dessas. A verdade é que ainda era a década de 1960. Essa década que muitas pessoas, até as mais novas que eu, têm saudade. Talvez porque tantas coisas proibidas tenham deixado de ser proibidas. Eu não entendo. Não entendo a razão de festejar o fim das proibições. Mas eu sou cristão. Ou tento ser. Sei que o proibido sempre é melhor.

Não me lembro da Copa do Mundo de 1970. De dentro da barriga da minha mãe era difícil olhar a televisão. Mas, mesmo assim, nasci no momento exato de me transformar num torcedor do Internacional de Porto Alegre. Não tinha como não ser um.

O homem já tinha chegado na Lua, não sei pra que, mas tinha chegado. O homem, bem dizer, o povo livre da América. O povo livre da América era o principio, o meio e o fim de todas as relações humanas. Isso me entristecia muito. Como brasileiro e como estudante de colégio. Sempre me neguei a aprender a falar, ler ou escrever em inglês. Porque eles não tentam entender o que eu falo, ora bolas? Ah, vão tomar banho! E sem água. A língua inglesa é uma língua estúpida. Uma palavra tem vários significados. Que falta de imaginação. E eles eram protestantes. Não tinham estátuas nas igrejas. Não se confessavam. Desacreditavam de alguns dogmas. Ah, definitivamente, esse povo livre da América não fazia o meu gênero.

O presidente era o general Emílio Garrastazu Médici. Ele tinha várias características odiáveis. Era um ditador. Um imbecil. E um gremista. Dizem que o Golbery do Couto e Silva é que mandava por baixo dos panos. Mais ou menos como o Antônio Carlos Magalhães mandou no Fernando Henrique Cardoso. Com a diferença que o Fernando Henrique era sociólogo. Certamente comia mais alfafa que o Médici.

Os Beatles decidiram terminar com a sua união rentável e saborosa. Cantando no terraço da gravadora. Mas eles já estavam cabeludos demais, fumavam maconha demais, tomavam ácido demais e tinham casado. Eram caretas e iguais a toda a juventude da época. Nada mais careta que ser da moda e fazer sucesso. E o John Lennon decidiu que era artista. E isso foi muito chato. Artistas sempre ficam chatos. Prefiro os deletérios e pernósticos andarilhos de calça de brim. Eu cheguei a usar calças boca de sino. Minha mãe me colocava essas roupas. E camisas coloridas e cabelos no ombro. Eu já estava inserido no sistema. Cresci fugindo da minha própria importância como um contador de histórias, ator de mentiras, sonhador desregrado e cínico sem limites. Não que quisesse ser um escritor ou artista. Eu fora. Queria apenas que parassem de me azucrinar com ideologias falsas e degradantes imagens de pessoas fazendo comercial no dia a dia consumista e alienado.

Mas, agora, tudo isso não passa, para vocês, meus delatores e carcereiros, de palavras mortas e soltas ao vento. Tudo isso aconteceu muito tempo antes de eu começar a explodir Macdonald's com bombas de estrume, tocar coquetéis molotov em carros-forte, detonar bombas em fábricas de cigarro e rezar o terço todos os dias. Então vocês me prenderam, torturaram e tentaram me reajustar ao convívio da sociedade. Eu nunca acreditei no convívio social. Nunca acreditei na felicidade. Nunca acreditei no amor. Isso também é uma mentira. Mas quem disse que amar não é um sonho? Eu morri no dia em que deixei de sonhar.

Transformei meu corpo em um instrumento do ódio e da repulsa. Decidam ou não pela minha execução, caros juízes de meus atos, tanto faz. Minha alma já está condenada.

J.C. F. D. , prisioneiro 78990, prisão estatal de Niterói, 3 de outubro de 2030.

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