Dilúvio
por Homera Cristalli

Naquela noite choveu tanto que os mendigos ficaram encharcados, apesar de lutarem bravamente para defender seu espaço debaixo das marquises, contra os ratos e as baratas apavoradas, e pensaram todos puta que pariu, porque sabiam que poucos entre eles sobreviveriam ao inverno.

Naquela noite os vidros da janela do apartamento no décimo segundo andar no centro de Porto Alegre tremeram tanto que a garota acordou às três e vinte da manhã e pensou puta que pariu porque sabia que não voltaria a pegar no sono, divagando sobre a monografia, o imbecil que dissera "eu te ligo" e o fato de que amanhã teria que acordar às quinze pras sete, com chuva ou sem chuva.

Naquela noite o empresário quarentão teve seu Chrysler verde-petróleo preso no alagamento da avenida Göethe ao voltar da casa da amante, - vinte anos, nativa de Erechim, próxima capa da Dado News - e pensou puta que pariu porque agora a mulher faria um monte de perguntas e afinal, a culpa era toda do PT que só faz obra em vila.

Naquela noite o jovem publicitário nem percebeu que estava chovendo porque estava debruçado sobre a décima quarta carreira de pó, enquanto o amigo e colega repetia histéricamente que eles, sim, seriam a verdadeira esperança para o cinema nacional. Ainda assim ele pensou puta que pariu porque daqui a pouco viriam a depressão e as promessas de que nunca mais.

Naquela noite o centro-avante de um dos maiores times da Capital gaúcha sussurrou ao ouvido da prostituta que ela era mais bela do que a Tiazinha e a Feiticeira juntas, e ela sorriu e pediu mais uma garrafa de champagne ao garçom do Gruta Azul, enquanto vários torcedores pensavam puta que pariu porque o time deles está fora dos campeonatos.

Naquela noite o michê resolveu deixar o seu ponto na frente do Colégio Militar e ir dançar um pouco naquele lugar tão legal e foi a única pessoa na cidade que pensou graças a Deus porque a lotação IAPI passa a noite toda.

Naquela noite houve falta de leitos no HPS e os médicos de plantão não tiveram um minuto de descanso porque quando chove muito é assim mesmo, as pessoas parece que enlouquecem e não param de chegar vítimas de acidentes de trânsito, bêbados, suicidas e ainda por cima, puta que pariu, aquele publicitário em overdose.

Volta ao Não 71