Idiossincrasias
por Gustavo Bittencourt

Alexandre é um cara diferente de mim ou de vocês. É um cara normal, com gostos normais. Ele não ouve Sonic Youth e não viu Cães de Alugues. Viu Pulp Fiction dublado na Bandeirantes e achou estranho. Não entendeu por que o Travolta volta no final do filme. Aliás, não imaginava que o Travolta estava tão gordo.

Alexandre tem uma empresa de gravação de vídeos de casamentos, batizados e formaturas. Ele começou gravando o casamento da sua irmã quando estava ainda no segundo grau. O vídeo ficou tão bom que a irmã indicou Alexandre para uma colega sua na empresa de telemarketing. Ele foi lá com a camerazinha VHS do pai, montou tudo em dois vídeos e um PC fodido e a mulher ficou maravilhada. Então a cunhada dela ia casar e levou a fita pro curso de noivos. O pessoal pirou. Era simplesmente o vídeo de casamento mais emocionante que já tinham visto na vida. Pronto. Só dali o cara conseguiu mais seis casamentos. Vocês podem chamar isso de sorte, mas ele também tinha ética e tino comercial. Três dos casamentos que apareceram eram no mesmo dia, então ele teve resolveu pegar o que ligou pra ele primeiro. Podia ter aceitado um outro, que pagava mais, mas era um cara de palavra. O outro cliente tinha ligado primeiro.

E assim, cerimônia atrás de cerimônia Alexandre foi construindo um pequeno império sobre uma reputação conquistada com um certo talento. As pessoas ficavam comovidas com os vídeos gravados por ele. E isso era facilmente explicável. O cara amava o que fazia. Não era um clichê workaholic, não saía por aí cantando marra. Era um cara simples, muito na dele, que procurava dirigir todas suas energias para as gravações de casamento, sem perder tempo com outras coisas. Não lia um único livro, assistia pouca TV, saía menos ainda. Com a inocência de um pequeno agricultor, ia levando a empresa pra frente e aos poucos ela ia crescendo.

Aliás, o crescimento da empresa foi uma preocupação pra Alexandre. Queria cuidar de tudo pessoalmente. No início deixou de aceitar muito trabalho por sentir que não ia poder dar tudo de si. Mas, à medida em que o dinheiro foi entrando, comprou uma van e colocou dentro uma ilha para acompanhar a gravação de até três casamentos ao mesmo tempo. E não deixava de dar uma passada em todos para sentir o clima da cerimônia. Tinha uma intuição fantástica para captar as as particularidades de cada casal de clientes. Sem muito papo, estudava os melhores ângulos deixando que a Igreja emoldurasse as cenas e pegava tomadas de pessoas chave.. Valorizava os arranjos florais escolhidos com tanta dedicação pela mãe da noiva. E, o mais impressionante: tanto ele quanto sua pequena equipe eram invisíveis na cerimônia. Ninguém sabia qual era o segredo, mas os vídeos de Alexandre tinham uma iluminação perfeita, sem aquela luz que cega os noivos na hora do sim.

Vocês têm que entender que se um de nós visse um desses vídeos, não notaria a menor diferença. Acharia tempo perdido como é com qualquer outro vídeo de casamento. As mesmas cenas VHS com cores lavadas, os pais dos noivos com um brilho nos olhos, algum tio bêbado passando a mão na bunda das meninas, velhos dançando Jive Bunny and the Mastermixers ou Um Sonho a Mais do Roupa Nova como se fosse o Jon Spencer Blues Explosion.

Mas para o pessoal que o contratava, os vídeos de Alexandre pareciam ter um efeito mágico. Eu não saberia explicar, não faz parte do nosso mundo.

Foi num desses casamentos que Alexandre conheceu sua namorada, Adriane. Ela estava fazendo as fotos da festa. Não era fotógrafa profissional, só irmã da noiva. Alexandre nem tinha notado a menina de tão compenetrado na sua tarefa de encontrar uma maneira de enquadrar todo mundo no altar. Os pais da noiva eram separados e tinham vários ex-maridos e ex-esposas. Os pais do noivo estavam brigados e não queriam ficar no mesmo lado. Enfim, mais um pouco e dava pra encenar Shakespeare no altar. E isso não é força de expressão: quase todo mundo que estava dentro daquela igreja era envolvido com o teatro. Isso incluía o padre, os coroinhas e o organista.

Quem não era ator era maquiador, iluminador, diretor de arte, produtor, o cacete. Na verdade, era um casamento de mentirinha numa igreja de mentirinha montada no anfiteatro da faculdade de Artes Cênicas. Alexandre nunca tinha visto coisa igual. Estava impressionado. Seus pais, católicos ferrenhos, pressionaram-no para que ele não aceitasse o trabalho. Mas o dinheiro era bom e a história toda ia acontecer numa terça-feira. Entre ficar em casa e trabalhar, ele sempre preferia empunhar sua VHS. Ia perder o Casseta e Planeta, mas azar, alguém gravava.

A noiva mesmo contratou Alexandre. Ligou depois de achar o minúsculo anúncio na lista telefônica feito em Corel pelo próprio Alexandre. Ele era um cara versátil.

A primeira dificuldade foi encontrar a tal da igreja. A contratante não tinha explicado nada do caráter falso do casamento e Alexandre passou várias vezes pela frente da faculdade antes de se dar conta que aquele bolo de gente estranha na frente do prédio eram os convidados. Estacionou a van em fila dupla e foi atrás da noiva. Quando a encontrou, estranhou. Era a primeira noiva que já estava no casamento antes de ir para o altar, ajudando a coordenar tudo. Explicou a situação a Alexandre.

"Ninguém de nós é católico praticante, tá ligado? Então achamos que não fazia sentido ter um casamento católico. Mas, daí meu noivo teve uma idéia divertida: encenar um casamento, satirizando as convenções burguesas."

Alexandre não sabia o que queria dizer satirizando, mas tudo bem. Era um profissional.

O fato é que a irmã da noiva, Adriane (ou Cloé, como ela queria ser chamada, ou Banzar, um apelido que um maquiador tinha colocado depois de voltar da África), apareceu durante a explicação e ficou encantada com o rosto ingênuo e de traços finos de Alexandre. Além do mais, acredito que ter uma história com alguém completamente fora do seu meio tocava seu lado coração. Era como uma volta à inocência, depois de anos vivendo no meio do teatro. Alexandre transmitia um frescor de quem tem uma visão básica e objetiva do mundo, que não vê significados profundos em nada, alguém que simplesmente vive a vida. E o que ela esteve procurando enquanto atuava nos palcos era justamente isso, essa simplicidade. Mas, de alguma forma, quanto mais buscava a simplicidade, mais se emaranhava em caminhos para chegar a um lugar de onde nunca deveria ter saìdo. Ou deveria, sei lá também.

Aconteceu que Adriane (ou Cloé ou Banzar) não pensou duas vezes. Ouviu seu coração e agarrou Alexandre quando ele estava montando o equipamento. Como ele não esperava o ataque e os dois caíram para dentro da van.

"Dona Adriane..."
"É Cloé, Alexandre..."
"Dona Cloé, eu..."

E a menina simplesmente tacou um beijo de língua no cara, bem teatro mesmo. Ele não sabia muito bem o que fazer então deixou, um tanto quanto resignado. Seu alarme de profissionalismo tocou. Mas quando ela acabou e afastou o rosto para ver os olhos dele, estavam fechados. Ele os abriu uns oito segundos depois, tempo suficiente para Cloé esboçar um sorriso muito meigo.

Alexandre sentiu uma coisa. Mas estava trabalhando, então pegou Adriane pela cintura, ele era forte, e delicadamente colocou ela pra fora da van.

"Dona Cloé..."
"Adriane..."
"Adriane, eu..."
"Deixa assim, Alexandre. Não fala nada pra ninguém."
"Pode deixar dona Adriane."

A fita do casamento ficou uma beleza, mas a irmã da Adriane mostrou pro diretor dela e o cara disse que aquilo tinha ficado brega, uma merda, igual a qualquer fita de casamento de classe média baixa. Então João André, o diretor, pediu à irmã da Adriane o telefone do Alexandre e daí pediu ao Alexandre para reeditar a fita seguindo duas instruções.

"O quê? Mas isso vai ficar muito estranho, senhor João André."
"Não é estranho, tu que não tá acostumado, fazendo sempre o mesmo feijão com arroz."
"Como?"
"Se tu não tá nem entendendo minhas idéias, é melhor eu ir pra ilha contigo. Daí eu digo e tu vai fazendo."

Na noite seguinte à edição, Alexandre chorou. Tinha sido o pior trabalho da sua vida. A fita foi cortada em pedaços de 25 segundos e as cenas embaralhadas seguindo um roteiro do João André que misturava a vida da irmã da Adriane com a do noivo e mais umas poesias do João André. Entravam letterings assim:

casamento
minto
sobre o acasala
mento
de menta é feito
o casal
do casa
mento
olha o monte!

Ficou parecendo uma colcha de retalhos sem sentido, ou com um sentido que Alexandre não era capaz de captar, segundo João André.

Por pura coincidência do destino, quando Alexandre enxugava as últimas lágrimas da fita mais horrível que editara na sua carreira, Cloé ligou. Como Adriane.

"Alexandre, Adriane no telefone " gritou da sala a mãe de Alexandre.

Como numa novela, ele levantou primeiro a cabeça e depois veio o corpo, em direção ao telefone.

"Alô..."
"Alexandre?"
"Snif... sim..."
"Oi, é a Adriane?"
"Oi..."
"Eu vi o vídeo do casamento."
"Não é meu, é do senhor João André. " disse com mágoa na voz.
"Eu sei... tem a cara dele... logo vi que não tinha a inocência dos teus outros vídeos..."
"Não tinha o quê? Como assim?"
"Nada não..."
"Tu viu outros vídeos meus?"
"Sim, vi dois antes da minha irmã te contratar. E essa semana vi mais quatro."
"Mas... como? Quem te conseguiu?"
"Eu levei umas fitas aí e o Maurão copiou pra mim..."
"O Mau... o quê? O Maurão não pode fazer isso sem eu autorizar! E sem os noivos autorizarem!"
"Eu disse pra ele que era pra tentar te vender prum pessoal..."
"O Maurão é foda..."
"Tu te importa que eu veja?"
"Não, tudo bem. Tu pode."
"Por que eu posso?"
"Er... bem... porque tu é uma guria legal."
"..."
"..."
"Eu também te acho um cara legal, Ale."

Nunca ninguém tinha chamado ele de Ale. Nenhuma das namoradas. Isso foi uma coisa que pegou o Alexandre de jeito. A partir daí, a coisa toda andou sozinha. Saíram para comer um bauru. Foram ao shopping. Passaram umas cinco semanas em lua de mel. Adriane abriu mão do seu lado cult e passou a freqüentar lugares onde o pagode, as camisas sociais e os cintos com fivelão comiam solto. Já Alexandre teve sua iniciação no teatro e no círculo GLS da cidade. Uma vez ficou até as cinco da manhã numa mesa com Adriane e mais dois amigos dela que eram casados. Depois, no carro, Alexandre fazia o inquérito.

"Mas eles dormem juntos e tudo?"
"É... tu acha nojento?"
"Um pouco... sei lá... cada um, cada um, né..."

Mesmo depois da "lua de mel", quando começaram os questionamentos (devo aguentar pagode para ficar com ele?/devo aguentar bicha louca pra ficar com ela?), o caso virou namoro. Foram três anos de um amor compreensivo onde os dois aceitaram abertamente as idiossincrasias um do outro. Como dizia Adriane, "cabeça é como pára-quedas: funciona melhor aberta".

"O que é idiossincrasia?"
"Deixa pra lá."

O deixa pra lá de Adriane, que voltava a ensaiar regularmente com a Companhia de Teatro Mente Móvel, marcava o início de uma nova era do namoro dos dois. Idiossincrasia era o nome de um roteiro que Adriane escrevera durante um ano sem Alexandre saber. Um dia simplesmente imprimiu tudo, 120 páginas do word, mandou encadernar e jogou no colo de Alexandre.

"O que é isso?"
"Um filme."
"Como assim?"
"Tu topa fazer um filme comigo? A gente se dá bem em tanta coisa. A gente aprendeu a amar nossas diferenças. Vamos fazer arte com isso."
"Mas eu não sei fazer filme, Dri. Só sei fazer casamento."
"Tu tem talento, Ale. Eu sei. Tu pode."

Ele pensou durante um tempo. Folheou rapidamente o roteiro. Viu a capa.

"O que é idiossincrasia?"
"Deixa pra lá."

Não tinha jeito de convencer Adriane de não ir adiante. Não foi uma coisa de momento. Ela planejou o roteiro durante um ano, escreveu durante outro e agora tinha que colocar aquilo pra fora. E queria o Alexandre dirigindo. Porque o roteiro falava de uma cerimônia de casamento. E ela queria que tudo fosse o mais real possível. Claro, dentro da concepção de realidade da Companhia de Teatro Mente Móvel.

Primeiro dia de filmagem , cena dezessete. Descrita em uma única linha: "A cerimônia de casamento se desenrola normalmente." Com algum equipamento nas mãos e a van com a porta aberta às suas costas, Alexandre entrou na igreja improvisada no gramado da casa de um cara que colcocava grana no caixa da Mente Móvel. E se deparou com o último ensaio da cerimônia de casamento que iria se desenrolar "normalmente" diante de suas câmeras.

"Porra, o que é isso?"

O altar tinha 30 centímetros de altura e era parecido com uma cama de casal. Aliás, estava sendo usada como uma. O padre e o casal de noivos pareciam uma escultura humana, pelados, emaranhando braços e pernas enquanto uma senhora de uns 80 anos teclava notas desconexas no órgão da igreja. Os convidados estavam todos congelados, cada um numa pose esdrúxula que, segundo o roteiro de Cloé, definia seu papel na vida dos noivos.

Alexandre ficou uns dois minutos examinando o lugar. Não encontrava Adriane no meio daquele mundaréu de esquisitos congelados. Também não a via correndo de um lado para o outro dirigindo a cena ou mudando objetos do cenário de lugar.

Contornou a mansão do milionário que simpatizava com teatro. No jardim de trás, a coisa era pior: cerca de vinte pessoas conversavam, também peladas, algumas em grupos de leitura, repassando trechos do roteiro, outras simplesmente encostadas embaixo de alguma árvore relaxando.

Alguns amigos de Adriane o cumprimentaram como se estivessem vestidos. Ele mal levantou a mão. Mas não o interpretem mal. Ele não estava chocado nem transtornado. Simplesmente não via graça naquilo tudo. E naquele momento, entendeu por que Adriane não deixou que lesse o roteiro: ele se entediaria.

Sem vontade de ligar o equipamento, voltou para o jardim da frente já desiludido. Filmar aquilo seria trabalhoso demais. Seus casamentos eram momentos verdadeiros onde sua câmera fluía. A emoção era totalmente genuína. Aquilo? Aquilo era chato. Aquilo era fingido. Aquilo era artificial. Aquilo era planejado. Aquilo era arte.

Parou novamente na frente da casa e procurou Adriane com os olhos. Enquanto isso, o órgão da senhora de 80 anos fã de Coltrane bombava hinos insanos. Seu olhar chegou novamente no altar.

"Putz..."

Não podia ser verdade. No altar/cama de casal, entre um braço do padre e uma perna do noivo, Alexandre viu um olho de Adriane. Ela era a noiva do Idiossincrasias. Por essa Alexandre não esperava.

A pupila dela se dilatou. E se retraiu. E se dilatou de novo. E circulou no globo à procura de ajuda. Dizia: Ale, me tire daqui.

Alexandre não se moveu. No fundo, sabia que Adriane tinha que seguir seu destino de Cloé.

"Sabia que ela tinha que colocar aquilo tudo para fora. E que eles juntos completavam-se de uma maneira artifical, represando impulsos que, mesmo levando ao sofrimento e à confusão, deveriam fluir.

Porque um rio nasce para correr."

Esse era o texto que fechava Idiossincrasia.

Fechava, não. Fecharia.

Porque se dependesse de Alexandre, Idiossincrasia nem começaria a ser filmado.

Os olhos de Adriane seguiam pedindo ajuda a Alexandre. Mas com uma expressão calma e compreensiva, o rapaz deu meia volta e foi em direção à van com passos lentos. Sentou ao lado do Maurão e disse para ele tocar.

"Para onde, seu Alexandre?"
"Para casa, Maurão. Vamos para casa."

Alexandre é um cara diferente de mim ou de vocês. É um cara normal, com gostos normais. Ele não ouve Sonic Youth e não viu Cães de Alugues. Viu Pulp Fiction dublado na Bandeirantes e achou estranho. Não entendeu por que o Travolta volta no final do filme. Aliás, não imaginava que o Travolta estava tão gordo.

Volta ao Não 71