A OBRA DE ARTE NA ERA DA TÉCNICA

E DA ESTETIZAÇÃO DA POLÍTICA

por Adriana Schryver Kurtz

gui@cpovo.net

Resumo: Como poucos homens de seu tempo, Walter Benjamin pensou o cinema com um equilíbrio inusitado entre a paixão de um simples mortal pela magia das imagens em movimento e sua militante e utópica crença (como bom frankfurtiano não ortodoxo) no papel emancipatório das técnicas de reprodução. As esperanças de Benjamin foram frustradas pelo nazi-fascismo. A técnica, inclusive a do cinema foi usada como "um fetiche do holocausto". Numa época em que a sociedade está cada vez mais deslumbrada com os avanços da tecnologia e que a politica caminha inexoravelmente para "o triunfo da espetacularização", vale a pena retornar a algumas considerações de Benjamin sobre o papel da tecnologia (e o lugar da ética) no universo da arte (e indústria) do cinema......

"Manejar a técnica não como um fetiche do holocausto, mas como uma chave para a felicidade." Esta era a esperança que o filósofo frankfurtiano Walter Benjamin depositava em uma geração capaz de ver na guerra não mais um episódio mágico, mas sim a imagem do cotidiano. Com esta descoberta, os homens estariam aptos a superar tanto a guerra "eterna" invocada pelos novos alemães (fascistas) quanto a "última" guerra, com a qual se iludiam os pacifistas. E mais: poderiam transformá-la numa guerra civil – "mágica marxista, a única à altura de desfazer esse sinistro feitiço da guerra" (Benjamin, 1985a:72).

A utopia benjaminiana, expressa no ensaio Teorias do Fascismo Alemão, de 1930, mostrou-se inócua diante da crescente aceitação que a apologia da guerra ("misticismo bélico", dirá um sarcástico Benjamin) suscitava junto a sociedade germânica. O tipo de irracionalismo e idealismo que animava a publicação de Guerra e Guerreiros (1930), coletânea organizada por Ernst Jünger, representava um apelo imensamente maior do que a crítica militante de Walter Benjamin. Essa tendência não levaria apenas a mais uma "guerra de alcance planetário" (expressão entusiástica dos guerreiros-autores do livro): ela possibilitaria também o apoio irrestrito – por ação ou omissão – a um regime ditatorial insano e ao mais bárbaro projeto de extermínio massivo já registrado na história: o Holocausto judeu.

É mais do que sugestivo que o célebre ensaio A Obra de Arte na Era de Sua Reprodutibilidade Técnica (1935/1936) tenha o cinema, a rigor, como seu objeto de análise. Cinco anos antes, Benjamin dedicava sua crítica à obra literária fascista – a coletânea organizada por Jünger. Sua aguda percepção da natureza "estetizante" do fascismo alcançaria em A Obra de Arte sua mais contundente expressão. A auto-alienação da humanidade, diria o filósofo, chegara a um ponto capaz de levá-la a viver "sua própria destruição como um prazer estético de primeira ordem" (e o que fez a Alemanha hitlerista, senão abraçar este tipo de vivência?). "Eis a estetização da política, como a pratica o fascismo. O comunismo responde com a politização da arte" (Benjamin, 1985b:196).

O comunismo - entre outras correntes políticas e ideológicas -, como sabemos, não respondeu à altura das exigências que os movimentos fascistas e o nazismo alemão exigiram de seus oponentes. O próprio Benjamim não deixou de ser uma vítima desta incapacidade. De uma forma ou de outra, os partidários da razão mostravam-se inaptos a perceber na sua totalidade a força e o alcance dos movimentos massivos engendrados pela direita em toda a Europa. Como observara Benjamin no texto que ainda hoje é um dos marcos da teoria do cinema, as metamorfoses no modo de exposição geradas pelas técnicas da reprodução tinham afetado também a política. Entrara em campo um novo processo de seleção – agora diante do aparelho técnico – do qual emergiam, "como vencedores, o campeão, o astro e o ditador" (ibidem:183). Pois este seria, de fato, o século dos astros e dos ditadores: e ambos se dirigiram às massas através do cinema.

"Todos os esforços para estetizar a política convergem para um ponto. Esse ponto é a guerra", profetizara Walter Benjamin. A nova guerra mundial seria a oportunidade ideal para oferecer um objetivo aos grandes movimentos de massa, enquanto os meios técnicos de então fossem mobilizados em sua totalidade, "preservando as relações de produção existentes" (ibid.:195). Pois a guerra, já antecipada, não se fez demorar. Ela significou para a indústria do cinema o mais efetivo impulso em seu desenvolvimento. As grandes fábricas de sonhos nasceram sob o signo da guerra, florescendo ao longo dos dois conflitos mundiais, conforme mostrou Sigfried Kracauer no clássico De Caligari a Hitler. Uma História Psicológica do Cinema Alemão (1988). Mesmo o desenvolvimento estético do cinema – a especificidade de sua linguagem – nota Paul Virilio - deve sua maturidade às lições deixadas pelo uso da parafernália armamentista.

"O cinema entra para a categoria das armas a partir do momento em que está apto a criar a surpresa técnica ou psicológica", já que não existe guerra sem representação ou arma sofisticada sem mistificação psicológica diz Virilio em Guerra e Cinema (1993:12), bela reflexão sobre a história da relação do medium por excelência do século XX com os avanços técnicos e científicos militares. O cinema esclareceria, assim, porque "abater o adversário é menos capturá-lo do que cativá-lo, é infligir, antes da morte, o pânico da morte" (idem). Com o que Goebbels concordaria plenamente ao proferir seu célebre discurso, no Congresso do Partido em Nuremberg, em 1934, imortalizado nas imagens de O Triunfo da Vontade (1936), pela cineasta Leni Riefenstahl: "O poder baseado em armas pode ser uma coisa boa; é porém, melhor e mais gratificante conquistar o coração de um povo e mantê-lo" (Goebbels apud Kracauer, 1988:191).

Nem mesmo o chamado "Programa de Eutanásia" – bem como o Holocausto judeu - prescindiu das imagens em movimento. Mesmo obras-primas expressionistas promoveram bem mais do que familiaridade com o que Kracauer chamou de "procissão de déspotas": elas já expressavam o típico preconceito contra as massas, de forma geral, e contra os judeus, em particular, como em O Golem, Como Ele Veio ao Mundo (1920), de Paul Wegener. Documentários abomináveis de contrapropaganda, como O Führer Doa uma Cidade aos Judeus (1944), procuravam confundir a opinião pública a respeito do genocídio, enquanto Vítimas do Passado (1937) invocava o mais rasteiro darwinismo como justificativa para estancar a propagação dos "imbecis". Obras ficcionais como O Judeu Süss e "documentários" como O Eterno Judeu repisavam, em 1940, a acusação quanto à natureza intrinsecamente pervertida do povo judeu, preparando a aceitação pública para a deportação em massa, o confinamento e a matança.

Pode ser irônico que uma das últimas providências de Goebbels, à frente de um Terceiro Reich já moribundo, tenha sido a realização de um grandioso espetáculo cinematográfico, Kolberg – um drama histórico sobre a resistência dos bravos soldados alemães, numericamente inferiores, ao exército de Napoleão. Em abril de 1945, Kolberg é finalmente exibido para um seleto grupo de funcionários do ministério. O filme não seria exibido ao público alemão pois Berlim ardia sob incessante bombardeio aliado.

Conta a lenda que, ao final da projeção, Goebbels faria uma insólita espécie de "previsão": em 100 anos, uma obra semelhante a Kolberg seria realizada, enfocando os feitos "heróicos" do Nacional-Socialismo. "Cavalheiros, vocês não querem fazer parte desse filme? Posso assegurar-lhes que será belo e edificante". O fechamento não deixa de ser surpreendente. Estaria o Ministro da Propaganda imaginando-se em um papel que – posteriormente – seria interpretado nas telas? É o que sugere sua afirmação final: "E a partir desta perspectiva é que vale a pena resistir. Resistam! E daqui a cem anos, o público não irá assobiar e vaiar quando vocês aparecerem na tela".

"Em plena derrota militar, Goebbels queria fazer deste filme o maior de todos os tempos, uma epopéia que ultrapasse, por seu fausto, as mais suntuosas produções americanas". Assim, mais uma vez, a Alemanha cedia à obsessão pelo "arsenal de percepção americano" (Virilio, 1993:16) – o cinema hollywoodiano que tanto fascinava o Führer e seu todo poderoso Ministro da Propaganda e da "Ilustração do Povo" ("patrono" do cinema sob o Terceiro Reich).

Ao contrário do que sonhara Benjamin, a técnica do cinema, como evidenciou a história, seria manejada sobretudo como um fetiche do holocausto. Também as pretensões e/ou esperanças do Ministro da Propaganda de Adolf Hitler mostrar-se-iam fantasiosas. Para as gerações nascidas após a II Grande Guerra e a Shoah (com maior força à medida que estas mesmas gerações se distanciavam, temporalmente, dos fatos ocorridos) a história seria – em grande parte – narrada sob a ótica dos vencedores: milhões de pessoas em todo o mundo testemunharam – como espectadores – os terríveis acontecimentos do século dos astros e ditadores, sob a ótica da indústria do cinema.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:

1. BENJAMIN, Walter. Teorias do fascimo alemão. Sobre a coletânea Guerra e Guerreiros, editada por Ernst Jünger. In: Obras escolhidas. Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1985a. p. 61-72. v. 1.

2. ___. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: Obras escolhidas. Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1985b. p. 165-196. v. 1

3. KRACAUER, Siegfried. De Caligari a Hitler: uma história psicológica do cinema alemão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988.

4. VIRILIO, Paul . Guerra e cinema. São Paulo: Página Aberta, 1993.

Filmografia

ARQUITETURA DA DESTRUIÇÃO. Peter Cohen (dir.). Suécia: Peter Cohen et al., Swedish Film Institute, 1989. 1 filme (119 min.), son., col. e P&B. 35mm. Título original: Architektur des Untergangs. Leg. português.

LENI RIEFENSTAHL. A Deusa Imperfeita. Ray Müller (dir.). Alemanha/Bélgica: [s/prod.], [s/distr.], 1993. 1 filme (181 min.), son., col. 35mm. Título original: Die Macht der Bilder. Leg. português.

O GOLEM, COMO ELE VEIO AO MUNDO. Paul Wegener (dir.). Alemanha, 1920. 1 filme (1.500m), mudo, P&B. 35mm. Título original: Der Golem.

O PODER E A MÍDIA – Goebbels: Mestre da Propaganda. Laurence Rees (dir.). Londres: BBC, [s./d.]. 1 filme (documentário), son., col. Dublado.

O TRIUNFO DA VONTADE. Leni Riefenstahl (dir.). Alemanha: NSDAP, [s/distr.], 1935-36. 1 filme (120 min.), son. P&B. 35mm. Título original: Der Triumph des Willens. Leg. português.

PRELÚDIO DE UMA GUERRA. Frank Capra (dir.). EUA: Ministério da Guerra dos Estados Unidos da América, 1942. 1 filme (54 min.), son., P&B. 35mm. Dublado.