O PAÍS DOS CACHORRINHOS

por Luiz Afonso Franz

lafranz@zaz.com.br

O grande desvio ético, moral e comportamental desta nação está na relação das nossas elites com os cachorros. Nossa falha e nossa vergonha transparece nos cachorrinhos de pêlo aparado, com fitinhas no pescoço, tratados melhor que gente. Cada bichinho de estimação que vai ao salão de beleza significa um dreno em nossos recursos, uma luz a menos em nosso futuro.

A questão é grave porque nasce no mais puro, lindo, distorcido e imoral amor. Gente que vai da classe média à abastada, influente e poderosa, ama de verdade seus animaizinhos de estimação e lhes dedica seu tempo, seu afeto e parte de seu dinheiro. Um amor sério e poderoso, ancorado no conceito de que há nobreza em amar os animais. Mais que isso: amar os seus animais é para eles uma demonstração social de grandeza e até de desapego.

É espantoso que quase todos sejam cristãos e cometam este desvio sentindo-se bem e ótimos seres humanos. Não têm amor pelos milhões de crianças famintas e sem futuro, apenas vestem suéteres coloridos em seus poodles e dormem como íntegros.

A cegueira para as misérias nacionais, a total desconsideração para com outros seres humanos é substituída pelo amor aos cachorros - ou gatos ou outros bichinhos capazes de proporcionar status e boas conversas na roda de amigos. Até porque é mais fácil e prático amar um cachorrinho - se ele late na hora errada sempre se pode dar-lhe um pontapé e jogá-lo para fora, o que pega mal no caso de crianças.

Cada noite que um chihuaua passa no aconchego de seu hotel para cães poderia ser transformada num mês de melhores perspectivas para uma criança de rua. Mas quem liga para crianças de rua? Há quase uma relação matemática: os itens para alimentação e embelezamento de bichinhos de estimação multiplicam-se nas prateleiras de supermercados na mesma proporção em que aumenta o número de menores sem nada pedindo um pouco de qualquer coisa nas esquinas das cidades.

Você já notou que rancho de supermercado que se preze tem que ser coroado com uma colorida embalagem de ração? Você já notou que este amor ao queridinho animal da casa tem que ser ostensivo e usado como uma auréola, emblema de verdadeira bondade? E é tudo sincero.

Proliferam as estéticas, hotéis e veterinárias especializadas em cachorrinhos tratados a ração feita de filé, importada com alíquota baixíssima. Multiplicam-se com a velocidade estonteante em que cresce o desemprego. E um estatístico poderia acompanhar estas curvas e verificar a data em que o Brasil se tornaria uma nação apenas de gentis senhoras apaixonadas por terriers, finíssimos cavalheiros com total empatia e afeição por pastores alemães, os próprios bem-aventurados animaizinhos e nossos governantes.

Porque a crueldade da coisa toda é que nossos governos também preferem dedicar-se a seus cachorrinhos de estimação a prestar atenção nas mazelas do Brasil. O chamado Ajuste, por exemplo, é trazido na coleira pelo presidente Fernando Henrique, que o trata a xampu especial, ração de qualidade e afagos carinhosos atrás da orelha.

É tudo pelo Ajuste, este cachorrinho tão querido que até parece um bebezinho cheiroso. E alimenta-se o Ajuste com verdadeira paixão, cada colherada na sua boquinha criando mais uma leva de desempregados, mais um batalhão de miseráveis, mais gente que tem sua vida e sua dignidade transformada em memórias. Mas o governo não vê nada disso, seu olhos enlevados estão fixos no rabinho abanante do cachorrinho Ajuste, só ele tem direito aos bilus-bilus presidenciais. Está bem, nem só ele: também são tratados como os melhores dálmatas congressistas que votam do jeito que se quer, bancos estrangeiros que compram os nossos a troco de nada e outros cachorrinhos de medalhinha no peito - como nossa amada grande imprensa. A grande imprensa faz olhinhos doces e ganha lá uma midiazinha.

É o amor, cantaria uma dupla sertaneja.

Ou alguma coisa menos nobre: o grau de inconsciência dos apaixonados por seus animaizinhos de estimação é assustador - mais um paralelo claro com o panorama geral do Brasil. Convenções de condomínio vetam cachorros nos apartamentos, mas lá estão sempre os totós latindo pelos cantos e carregados nos elevadores. Um perigo sanitário, cachorros são proibidos nas praias mas invariavelmente estão lá para aproveitar o sol e o ar marinho. E aos pouquinhos os totós de barriga cheia e fraldinha estão conquistando mais um espaço - vários deles já foram vistos afagados nos colos dos felizes papais adotivos espiando as vitrinas dos shopping centers. Seus proprietários, respeitáveis cidadãos que usam cinto de segurança, têm o lindo amor para justificar estas contravenções: o profundamente amado cachorro deles sempre é diferente, especial, quase como um filho, um ser humano de quatro patas. Seu xixi praiano é puro como água mineral, ele não transmite doenças. E é tão carinhoso...

Estes brasileiros de primeira qualidade beijam na boca seu cachorrinho e fecham a janela do carro para evitar a mera proximidade de uma criança faminta. Fazem permanente e tintura na pelagem do cachorrinho mas não dão uma moedinha de 10 centavos para um brasileiro transformado em pedinte.

Não consigo imaginar maior subversão, maior imoralidade e maior desvio comportamental. E nem lembrei dos corretíssimos proprietários de cães fila que trucidam freqüentadores de parques.

O grande negócio do cachorro belo e saudável cresce, um fenômeno econômico que merece entusiasmadas reportagens por aí. E o brasileiro sem cachorro, sem emprego, sem teto, sem terra e sem tudo mendiga um dinheirinho que não lhe dão, implora um emprego que não existe, sobrevive como os ratos.

A rapidez com que os tamagotchis foram descartados pelas novas gerações poderia significar um alento, uma esperança de que no futuro o amor aos cachorros talvez fosse substituído por amor ao próximo. Mas já vi uma pequena multidão olhando fascinada o orgulhoso proprietário de um pequeno iguana, reptilzinho trazido da América do Norte. O homem exibia, felicíssimo, seu iguana-cachorrinho empoleirado num dedo da mão, tão verde que parecia de plástico. E o bichinho usava colete feito a mão e um sombrerinho mexicano.

É desalentador. Quando até iguanas são importados e têm guarda-roupas num pobre país terceiro-mundista as coisas só podem piorar.