Cena dos anos 70

Gustavo França


 

– Professor!

– Sim, Juquinha, o que é?

– Eu queria saber o que é uma mulher.

O velho mestre não ficou espantado com a pergunta. Essa garotada devia prestar mais atenção nos livros de História, pensou. Não é porque estavam em 2175 que não tinham que saber das coisas antigas.

– Alguém mais tem a dúvida do colega?

– Sim! - responderam todos os alunos, em coro quase uníssono. Uma das diferenças dos novos tempos é que vozes de soprano e contralto eram coisas só reproduzidas em computador.

– Está certo! Ante a falta de informação que cerca esta sala, vamos interromper o ponto e voltar aos primórdios da humanidade. Meus caros pupilos, pode ser chocante para vocês, mas o homem nem sempre esteve sozinho no mundo!

Fez-se perturbador silêncio, ante a súbita revelação.

– Sim, turma! Ele dispunha de uma companheira de espécie, popularmente chamada de mulher. "Woman", se forem pesquisar em sites estrangeiros.

– E para que servia? - indagou novamente o curioso Juquinha.

– Basicamente, tinham a mesma utilidade das chip-femmes de hoje: procriação e uso sexual.

– Ah, como essas bonecas que nossos pais têm em casa! Também funcionavam a energia solar?

– Não exatamente, Tiaguinho! Eram formadas por matéria orgânica, como você. Exceto pelo fato de que tinham o formato quase igual ao desses adornos que você acabou de citar. Mas com uma grande diferença: a qualidade técnica!

– Como assim?

– Bem, Marquinhos, a verdade é que as mulheres, por mais que se esforçassem, não conseguiam obter os contornos e texturas que se produz hoje em dia.

– Mas elas só se prestavam a gerar seres humanos e atividades domésticas, como as substitutas atuais?

– Quase todas! Algumas se dedicavam a atos intelectuais ou mesmo braçais, e pode-se até dizer que foram muito bem. Mas, depois de muitos conflitos internos, tiveram que ceder às aspirações da maioria e se adaptar ao sistema que imperou a partir do início do século passado.

– Que sistema? - Juquinha estava fascinado com o tema. Não conseguia parar de pensar que poderia ter saído de outra coisa que não aquela chip-femme guardada no sótão, com bateria gasta. O pai havia comprado uma nova e esquecera de reciclar a outra.

– É o seguinte: por volta do fim do século XX, as mulheres em geral se entregaram à luta pelo progresso estético. Na busca por atributos que as tornassem sexualmente mais atraentes aos homens, passaram a esculpir o corpo com outra substâncias. Com a globalização, não demorou muito para que o planeta não tivesse mais nenhuma mulher sem acessórios de plástico.

– Plástico? O que é isso?

– Um material que não se usa mais. Mas com toda essa demanda incessante, mal sabiam elas que estavam causando a própria extinção.

– Por quê?

– Com os avanços da ciência, o homem logo pensou em passar a produzir mulheres artificiais, sem o constante risco de flacidez que assolava as de carne, osso e silicone. O único entrave era o fato de que não se conseguia bolar uma forma de procriação que não envolvesse a participação feminina.

– O que quer dizer "feminina", professor?

– Já ia esquecendo de explicar. Era um adjetivo que significava "relativo à mulher".

– Ah, bom!

– Voltando ao tema, o que importa é que, no ano de 2090, finalmente foi legalizada a clonagem de todas as células de reprodução das mulheres. Em 2105, foi criado o útero artificial, o último órgão feminino - lembrem-se da explicação anterior - que faltava para ser redesenhado. Cinco anos depois, foram produzidas as primeiras chip-femmes do mundo, nos modelos que seguem até nossos dias, com pequenas alterações ditadas pelos gostos predominantes em cada época.

– Mas as mulheres também não podiam ter feito o mesmo com os homens?

– Até poderiam, Flavinho! Só que os últimos exemplares de mulheres pensantes haviam falecido há mais de meio-século. Para dizer a verdade, as últimas mulheres do mundo só faziam dizer um monte de bobagens repetidas e incompreensíveis, sem contar os movimentos destemperados que chamavam de dança. Foi por esta razão que nossas "bonecas" de hoje não vêm com áudio, salvo os sons programados para a cópula.

– E o que aconteceu com as mulheres?

– Abandonadas pelos parceiros, foram desaparecendo em larga escala. Os cientistas tiveram a preocupação de manipular geneticamente os embriões para que só nascessem homens, garantindo um fim mais rápido e menos sofrido para a espécie em desuso.

– Que legal! E onde podemos encontrar imagens desses espécimes?

– Nos museus eletrônicos ainda se pode achar algumas fotos. Mas, ainda assim, não posso garantir que sejam autênticas. É que os restauradores de hoje fazem um trabalho tão perfeito que acabam encobrindo as falhas originais. São os males da modernidade...
 


As mulheres podem ser hetero, lésbicas e bissexuais.

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