FÓRUM, CIRANDA E RODA
por Luis Augusto Fischer
No fundo das entranhas de todo o nosso debate - "nosso" quer dizer da gente que não vendeu completamente sua alma nem suas ilusões de mundo melhor, fraternidade e esses babados tão caros e raros -, bem lá no fundo, dorme um monstro que tememos acordar. Não, valente leitor, não se trata do conhecido monstro de duas cabeças, uma chamada Internacionalismo e outra Socialismo-num-só-país, mas pode chamar de Trótsky e Stálin, respectivamente. Nem se trata do outro monstro, o enigmático e apavorante monstro Lugar-da-Democracia-no-Socialismo-que-Sonhamos. Estes existem e atuam, mas não é dele que vamos falar. Nosso caso é o da Modernização.

O senhor e eu sabemos que a vida de nosso país, toda ela, desde queos portugueses aqui chegaram, foi atravessada pelo tema da modernização.

Para ser mais preciso, o Brasil é um dos elementos da Modernidade: com a descoberta e a colonização, os portugas se viabilizaram por um longo tempo,sobretudo com o ouro e os diamantes extraídos no século 18, e dos portugas tiraram partido os ingleses, que inventaram a máquina a vapor, que fez a indústria moderna. "Sem nós, a França não teria sequer a sua pobre declaração de direitos humanos", disse Oswald de Andrade em uma daquelas gritarias, por sinal modernistas.

E o Brasil viveu e vive às voltas com o tema. Uma das formulações é a otimista, que imagina que a modernização do país ainda não completou seu ciclo: por mais que tenhamos acabado com a escravidão (há meros 114 anos, não esqueçamos), importado tecnologia e aberto o mercado e as pernas para o capital internacional, ainda faltaria fechar o circuito com a modernidade social, com escola, hospital, biblioteca e iogurte para todos.

Outra é a formulação pessimista: a modernização do país é esta aí mesmo, com milhões de excluídos para milhares de incluídos. Não haveria, nesta versão, espaço para a ilusão social-democrata, reformista, de paulatina conquista de cidadania, uma escola aqui, um hospital ali, uma verba para cultura lá adiante. O lugar do Brasil (ou da América, ou do Hemisfério Sul) na ordem moderna seria esse mesmo que conhecemos, com nenhuma variação substantiva.

E tem a versão eufórica, mesmo que com algum matiz aparentemente crítico.

É o caso do Modernismo brasileiro, quer dizer, paulista, aquele que a gente aprendeu no colégio e hoje virou cânone obrigatório, inescapável, a ponto de excluir (da escola, dos manuais de história da literatura, portanto do horizonte prático da vida cultural) autores que não rezem por aquele catecismo - para os gaúchos é fácil ver isso, por exemplo com o desprezo por Simões Lopes Neto, reduzido a "regionalista" e, pior ainda, "pré-modernista". Sem valor, portanto.

 
(Espero que o leitor me entenda, e veja aqui, neste exato momento, uma banana para tal mentalidade, cá com as minhas mãos. E língua de fora. E um palavrão, dito entre dentes, que eu tenho educação.)
O caso é que até hoje estamos aí nesta batalha. Virou, mexeu, o tema das nossas conversas, à direita e à esquerda, torna a ser a modernização. Não, nem sempre leva esse nome, e mesmo se disfarça sob outras denominações: novidade; busca do novo; romper; inovar; inventar; novos valores; novas tecnologias; aggiornamento; atualização; etc. Não precisamos ir longe para observar que somos condenados à modernização, desde 500 anos, com acento especial nos últimos 150.

Aí chegamos aos governos petistas e de esquerda em geral. Não vou sequer tentar uma análise de rigor, que não sei nem quero fazer - e, piormente, nós sabemos que provavelmente o resultado seria a constatação de que aqueles dilemas apontados lá em cima estão vivíssimos, sem resolução à vista.

Dito de modo direto, o resultado de nossos governos é modernizador, com controle social: fazemos força para espalhar as conquistas modernas feito vacina e água tratada para todos, e dispomos os mecanismos de decisão para a consideração de mais gente do que a tradição brasileira (e ocidental, em regra) reunia, quer dizer Orçamento Participativo, uma das coisas modernizadoras, isto é, civilizadoras, que nossos governos têm executado, contra muito pau de conservadores mais e menos esclarecidos.

Mas estou espichando a conversa e não cheguei no ponto. Que é o seguinte: até onde é que vamos levar a modernização? Até que ponto podemos esticar a corda em favor da modernização? Até que ponto suportamos romper os laços com os valores pré-modernos (atenção, leitor brasileiro: eu disse "pré-moderno", não "pré-modernista", cruz-em-credo), quer dizer rurais, estáveis, para aderir com força ao mundo urbano, civil, leigo, científico, industrial, informático etcétera e tal? E será isso mesmo que queremos e devemos querer isso mesmo, para todos e para sempre?

São perguntas inúteis, nem precisa me dizer, perguntas de ficar trovando na mesa do bar, aquele mesmo lance que o Nei Lisboa tematizou com brilho magnífico no mais recente disco. O caso é que fiquei pensando em tudo isso ao presenciar o final do II Fórum, aquela bacana e afetuosa reunião de gentes variadas. Tu te lembras como foi? Todos de mãos dadas, dançando felizes e embevecidos, eletrizados e siderados, irmanados e submissos alegremente, em forma de roda, como fazíamos na infância que hoje, vista à distância, parece sempre uma ilha de alegria eterna (mas foi uma barra), todos dançando uma música da Lia de Itamaracá, aquela senhora que em tudo e por tudo representa o pré-moderno e o antimoderno. Que representa uma espécie de utopia regressiva, porque coloca como ideal aquela sugestão de afetos antigos e fenecidos, que ficam lá na parede da memória como trunfos do passado, e que são irrepetíveis.

Ou eu é que tô de mau humor?
 

Luis Augusto Fischer


 
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