QUASE MARCHEZAN
por Giba Assis Brasil
Já que todos nós temos virtudes e defeitos, e já que todos nós um dia vamos morrer, me parece compreensível que uma pessoa que acabou de morrer tenha suas virtudes ressaltadas e seus defeitos relevados ou esquecidos, ao menos por um tempo. Mas tudo tem limite.
 
A Zero Hora me conta que o recém-falecido Nelson Marchezan era um político dinâmico, entusiasmado e incansável, e eu acredito. Que era um sujeito leal com seus amigos, e eu não tenho nenhum motivo para duvidar. Que Nelson Marchezan era um político "preocupado com a inclusão social", e, tudo bem, eu continuo me obrigando a acreditar. Talvez, inclusive, o fato de Marchezan ter estado no poder ou próximo a ele nos últimos 30 anos tenha contribuído para aumentar a inclusão social no país, a gente é que ainda não se deu conta.
 
A Zero Hora também afirma que Nelson Marchezan era um político de princípios, e eu fico pensando que tipo de princípios pode ter um democrata cristão que virou líder do governo militar na época da ditadura e, mais tarde, social-democrata, exatamente quando o partido social-democrata estava no poder. Mas, enfim, digamos que pode existir aí algum padrão que eu não consigo enxergar além do óbvio, e aceitemos que Nelson Marchezan era um político de princípios, sejam lá quais forem.
 
A Zero Hora também conta que Nelson Marchezan "quase foi cassado" na época da ditadura, e eu fico imaginando o que isso significa, ou que leituras esse dado histórico pode ter. Para quem foi realmente cassado, banido, exilado, torturado ou desempregado pela ditadura sustentada pelo partido de Marchezan, saber que o próprio Marchezan "quase" foi cassado será um alívio? ou um consolo? Para a Zero Hora, ou para quem, dentro da Zero Hora, faz questão de tornar público este fato (ou quase fato), trata-se de uma justificativa de revisão histórica? ou, quem sabe, de uma expiação parcial de suas próprias responsabilidades? (Mais ou menos como os gremistas que, dentro ou fora da Zero Hora, não perdem oportunidade de lembrar que o Internacional "quase" caiu para a segunda divisão em 1999.)
 
Mais adiante, a Zero Hora afirma com todas as letras que Nelson Marchezan era um democrata. Bom, aí chegamos ao limite, ou quem sabe já tenhamos passado dele. Quem estava vivo e lúcido em 1984 certamente lembra que, naquele ano, o Congresso Nacional teve duas oportunidades de aprovar eleições diretas para Presidente, primeiro com a famosa emenda Dante de Oliveira, depois com uma manobra regimental que terminou não dando certo. As duas oportunidades esbarraram nos votos da Arena (o partido de Marchezan, na época). Uma das votações, em abril, foi nominal e a outra, em setembro, feita por voto de lideranças (e o líder da Arena era justamente Nelson Marchezan). Ou seja: a Zero Hora está chamando de "democrata" um cara que é possivelmente a única pessoa na história recente do Brasil que, com seu voto pessoal, impediu duas eleições.
 
Tudo bem, o cara acabou de morrer, não vamos tripudiar. Aceitemos a afirmação da Zero Hora pela metade. Já que existem os deputados "quase" cassdos e os times "quase" rebaixados, as pessoas "quase" homossexuais e as "quase" heterossexuais, as moças "quase" grávidas e os rapazes "quase" honestos, digamos que o recém-falecido Nelson Marchezan era "quase" um democrata. E esperemos que os "quase" incluídos não protestem, como sempre. Ou quase sempre.
 

Giba Assis Brasil
giba@portoweb.com.br


 

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