A tese sem antítese
ou a dialética caolha da arte pós-moderna

Muriel Paraboni *

murielp@terra.com.br

Às vezes dá mesmo pra duvidar que a banalização da obra de arte pela sua apropriação enquanto simples mercadoria de consumo desta pós-moderna indústria cultural é ponto passivo entre os envolvidos na coisa. E por envolvidos entendamos evidentemente os realizadores de arte, de um modo bem geral, artistas, produtores, críticos, diletantes. Se por um lado dá pra aceitar que alguns tantos por aí defendam categóricos a indústria cultural como tábua de salvação da produção artística – um assunto tão polêmico que merece uma discussão específica – por outro não cabe qualquer dúvida de que um sistema de produção fundamentado na indústria e no puro comércio abandona a noção de arte para recriar uma espécie transgênica de mercadoria cultural.

Essa mesma noção de indústria irrefutavelmente tem se responsabilizado pela banalização de um universo vasto de mercadorias utilitárias em nome da produção de riquezas e da geração de empregos. Tanto que já é óbvio dizer que um carro não vale só pelo tanto que anda, uma geladeira pelo tanto que gela, um par de tênis pelo tanto que preserva os pés do sujeito. Se um dia esses objetos tiveram um valor de utilidade no cotidiano das sociedades, hoje essa utilidade passou para um plano de bem menor relevância. Mas não é exatamente de geladeiras e de automóveis que se deseja tratar aqui. A relação a ser feita é exatamente a mesma só que na direção do objeto artístico: se em condições ideais e absolutamente autônomas o objeto emana esse seu profundo e universal sentido de despojamento, gratuidade e subjetividade, prestando-se dessa forma à contemplação livre e aberta dos seus signos todos, no âmbito da tal indústria cultural tudo isso se vê relegado a um segundo plano. Como mercadoria, e de acordo com a lógica dominante da indústria moderna, esse objeto artístico cumpre com um ciclo autofágico de existência, em que é produzido para ser consumido por um público determinado e delimitado, que dele espera rigorosamente só aquilo que lhe está sendo vendido, para em seguida morrer e desaparecer na sua superação pelo objeto que a indústria já oferece como novo, aquele que deve ser o seu “natural” substituto.

Como acontece na indústria das utilidades, a produção artística passa também a competir. Os objetos disputam público e prestígio. Os artistas disputam espaços e condecorações. Nem a arte e nem os artistas podem coexistir num ambiente desse tipo. As obras são preparadas racionalmente a partir de objetivos logísticos, tendo públicos e perfis muito bem definidos. A estrutura do modo industrial de se produzir arte delimita e distingue categorias, alvos, discursos, objetos, e as obras passam a ser realizadas de forma serial para então servirem ao gosto do consumidor, como se fossem marcas distintas de sabão em pó, como se fossem as mais novas linhas de desodorantes anti-alérgicos do mercado. Ora, se nessas condições ainda se insiste por chamar esses objetos de “artísticos”, é certo que existe alguma coisa torta nisso tudo. A própria literatura especializada jamais abriu mão, em qualquer momento, das propriedades essenciais da arte, a sua gratuidade, o seu despojamento e o seu grau de subjetividade, em que quanto maior é a subjetividade do objeto, tanto maior será a multiplicidade de sentidos passíveis de serem nela identificados. O próprio Walter Benjamin, formidável filósofo das artes e das ciências sociais e humanas que nos anos 30 reconfigurou a noção de obra de arte com base na sua reprodutibilidade técnica, ao mesmo tempo conceituando e de certa forma condenando o conceito de aura pela alegoria, pois mesmo ele, em aceitando a indústria reprodutiva da obra de arte como um advento positivo e multiplicador, não deixou de considerar nesta nova alegoria a necessidade subjetiva e gratuita da arte.

É precisamente nele, em Benjamin, que talvez se possa encontrar um pouco de luz nesse caminho obscuro das práticas artísticas da pós-modernidade. Como ele mesmo concluiu nas entrelinhas dos seus estudos, hoje mais atuais do que jamais se imaginou, se a indústria reprodutiva da obra de arte, cujo eixo nasce à raíz de uma conjuntura muito anterior, maior e mais complexa, pois se essa coisa toda é de fato inevitável nos nossos tempos, é imprescindível que o universo de envolvidos nessa prática – aqueles mesmos que foram citados a pouco – tenha consciência tanto da frugalização sofrida pelos objetos assim gerados quanto da própria reconfiguração que então sofre o conceito essencial de arte. Às vezes não dá mesmo pra saber se essa consciência é de fato ponto passivo. É certo que tem muita gente que não sabe disso ou que não concorda por alguma possível deficiência informacional. Não é raro escutarmos os veementes defensores da indústria cultural sem jamais identificar uma única consideração que respeite a estética a ser posta em prática em seus discursos ornados de pura flama. A frase mais comum é quase uma vulgaridade desabitada de qualquer apreciação lógica, tão pálida de sustentação que em determinados casos chega a parecer mesmo uma doutrina mística. “A quantidade faz a qualidade”, heis a justificativa, pura e simples. Na remota hipótese dessa afirmação ser fundamentada, concreta e ainda correta, como então se mediaria a qualidade da produção artística? Ou seja, como a sociedade poderá filtrar as obras relevantes para o seu patrimônio se aquilo que a indústria cultural dispõe é pouco mais do que um bizarro caldeirão de simulacros artísticos? Esse é o ponto-chave nas especulações de Benjamin.

Tomando emprestada a mesma noção que a pouco afirmou a banalização das mercadorias utilitárias pelo conceito pós-moderno de indústria, aqui vemos também a consolidada indústria jornalística sofrendo alarmantemente desse mesmo mal. E sem adentrar nas questões mais peculiares dessa indústria podemos rumar direto para as suas escassas páginas culturais, onde por suposição deveriam ser encontradas as apreciações críticas às obras de arte. Pelo menos isso talvez seja ponto passivo entre os envolvidos – aqueles – na produção artística: a crítica moderna é muito rara e quando ela existe se apresenta logo de forma terrivel e melancolicamente rasteira e portanto inútil. Não é à toa que se trata de uma categoria artística esmagada pela pressão de duas indústrias hoje altamente competitivas: de um lado, a jornalística, que ganha mais fazendo matérias policiais do que com descrições pormenorizadas de pinturas abstratas – segundo a sua própria e lamentável cosmovisão; e de outro a própria indústria cultural, que, uma vez fundamentada na competição, relega à crítica um papel que nunca foi o seu, ou seja, o de apenas qualificar e polarizar as obras.

Nas teorias de Benjamin, a crítica exerce um papel absolutamente vital no ciclo de existência da obra de arte. Para ele, a obra e o artista não existem sem a crítica. São dois membros interdependentes. A crítica não pode objetar sobre o nada e a arte não produz sentido amplo sem que haja quem o investigue, isso pra ficar só na superfície da questão. Se quisermos ir mais longe, basta observarmos cada obra de arte como um objeto único, celular, parte indivisível de um enorme mosaico, parte que traz sentido em si, que também dá sentido ao todo e que produz novos sentidos a partir do todo e de combinações de suas partes. É a famosa teoria da constelação de Benjamin, a qual ele aplica ao processo histórico mas que também é aplicável no entendimento da arte: cada obra pode ser vista como uma estrela luminosa no pano infinito da criação humana; a luz de cada estrela é o sentido de cada estrela em si, mas ela também ilumina o sentido das demais estrelas, de modo a termos infinitas combinações de sentido pela luz que delas emana.

A arte se desenvolve através desse processo, fundamentalmente dialético em todos os seus aspectos, em que a crítica exerce justamente o papel de mediadora das significações múltiplas produzidas pelos objetos. Esse é o processo que torna a criação artística positiva e afirmativa (tese), interpelativa e propositiva (antítese) e afinal conciliadora e compositiva (síntese), rumando assim sempre para a frente em consonância com o seu tempo e com a sua realidade. A crítica é, deste modo, um membro essencial do ciclo da produção artística, porque é nela que a arte se realiza, se concreta, se afirma enquanto objeto cultural. É efetivamente no reconhecimento dos potenciais e relevantes sentidos que os objetos produzem no âmbito das suas sociedades e culturas que a crítica consolida o seu posto vital na dialética da criação artística. É portanto através de uma permanente mediação da crítica, e de uma mediação séria e ainda o mais que possa profundamente embasada e analítica, que a sociedade refuta ou encontra o espaço para cada obra produzida e os realizadores vislumbram caminhos possíveis para a sua criação. Se pelas idéias de Benjamin a crítica é parte natural do processo artístico, no âmbito da indústria cultural ela ganha importância decisiva. Neste caso, se a quantidade faz mesmo a qualidade, então é preciso que alguém ajude a identificar com um certo rigor essa “qualidade” no meio de tanta bagunça. Desejar evoluir numa dialética caolha é uma contradição filosófica e uma impossibilidade prática.

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* Muriel Paraboni, 25, é jornalista e curta-metragista, especialista em produção cinematográfica e em teoria do teatro contemporâneo.