MARCAS FERIDAS
por Joaquim Castanheira

O mundo é tomado por uma onda de boicotes a produtos americanos. Ícones como Coca-Cola, McDonald’s, Nike, GM, Esso e Citibank entram em estado de alerta
 

Nas últimas décadas, os Estados Unidos construíram sua hegemonia sobre dois pilares aparentemente sólidos, o militar e o econômico. A força do primeiro tem sido sentida na pele do povo iraquiano e pode ser vista nas imagens cruas exibidas por emissoras de TV. Cada bomba despejada sobre Bagdá, porém, provoca paradoxalmente leves mas contínuas fissuras no pilar econômico. Na semana passada, enquanto as tropas americanas e britânicas avançavam pelo deserto iraquiano, milhões de manifestantes saíam às ruas de países dos cinco continentes para contestar o massacre. Comuns em ocasiões como essa, os protestos desta vez traziam uma novidade. Ícones do estilo de vida americano e símbolos máximos da pujança econômica do país, marcas como McDonald’s, Citibank, Nike e Coca-Cola disputavam espaço em cartazes e faixas com imagens demonizadas de George W. Bush. Ao mesmo tempo em que pediam o fim dos ataques, os manifestantes gritavam a favor do boicote a produtos das corporações americanas. “O boicote é uma derradeira ferramenta para a opinião pública se colocar contra a guerra”, diz Pol D’Huyvetter, da ONG Pela Mãe Terra. “Estamos atingindo os Estados Unidos naquilo que eles têm de mais precioso, o dinheiro.”

Os manifestantes podem não ter a consistência ideológica de um partido político, nem a disciplina de um exército, mas demonstram a coragem e determinação de um grupo guerrilheiro. Assim, são capazes de provocar sérias sangrias nas mais valiosas marcas do mundo e colocar em risco as corporações americanas. Suas principais armas são as manifestações públicas e a internet. Sua forma de organização, as ONGs. “Nas nossas festas sempre fazemos dois rituais: Coca-Cola no ralo e enforcamento do Ronald McDonald”, diz Thomas Antônio de Souza, 27 anos, coordenador da ONG paulistana Alerta – Associação Ligada à Educação e Recuperação do Planeta Terra. “Dizer não a tudo que vem dos Estados Unidos se tornou uma opção de vida para mim”, conta o artista plástico Rodrigo Barrales, 24 anos, diretor da Alerta. Os dois ativistas prometem pôr nas ruas esta semana um tal Grupo de Intervenção Urbana. A idéia é que uma equipe de 20 pessoas se espalhe por São Paulo e faça ataques surpresas a cadeias de fast-food americanas. “Não vai ter quebra-quebra”, promete Souza. Segundo ele, em ações rápidas manifestantes entrarão nas lanchonetes, farão um pequeno discurso e distribuirão panfletos sugerindo a substituição de produtos americanos por outros “politicamente corretos”. “Vamos pregar o consumo da paz”, afirma Barrales. Até homens de negócio entraram na onda. O empresário Vasco Freitas desistiu de trocar o seu Golf 2001 por um Focus zero quilômetro. “Ford nem pensar. Agora vou de Honda Civic, que é japonês”, diz ele.

Os últimos dois anos foram pesados para as corporações americanas. Primeiro, o estouro da bolha da internet fragilizou as finanças dessas empresas. Depois, os escândalos em torno das fraudes contábeis de companhias como Enron, Worldcom e AOL Time Warner racharam a credibilidade do sistema. Só faltava o ataque a símbolos tão americanos quanto as listras e as estrelas da bandeira do país. Voam petardos de todos os lados. Os alunos de uma das três unidades do Colégio Augusto Laranja, de São Paulo, combinaram de trocar os uniformes azuis por roupas brancas.

Em localidades tão distantes como Paris, Quito, Rio de Janeiro e Sorocaba, lojas do McDonald’s foram depredadas. Alvo preferido dos manifestantes, a rede é presença constante nas correntes de mensagens eletrônicas incentivando ao boicote de seus restaurantes. “É o preço que pagamos por uma exposição universal”, diz Francisco de Carvalho, diretor de assuntos corporativos do McDonald’s no Brasil. Sem grande alarde, a rede procura contra-atacar. A gerência de administração de crise, subordinada a Carvalho, identifica os remetentes dos e-mails e envia respostas com a argumentação repetida à exaustão pelos executivos: o McDonald’s é uma empresa com raízes locais, investe R$ 200 milhões por ano e emprega 36 mil pessoas, todas brasileiras, “do presidente ao jovem que frita batatas nas lojas”, como diz Carvalho.

A maioria das empresas americanas garante que não foi atingida pela onda de boicotes. Mas nunca os produtos do País foram tão impopulares como agora. E isso acontece justamente no momento em que os colossos empresariais americanos dependem como nunca das vendas externas. A Coca-Cola recolhe fora dos Estados Unidos 67% de seu faturamento de US$ 20 bilhões. Metade das receitas da Nike e da Kodak também vem de outros países. Tudo estaria bem se a simpatia pelos EUA não estivesse despencando em todo o mundo. Uma pesquisa do Pew Research Center revela que na França o índice caiu de 63% para 31%, na Rússia de 61% para 28% e na Turquia, de 30% para apenas 12%. Há uma distância, porém, entre a imagem que se tem de um país e o desejo de comprar os produtos ali fabricados. “Marcas estão associadas ao estilo de vida de uma sociedade, e não à política do país”, afirma à DINHEIRO Roman Perez-Miranda, presidente para América Latina da Interbrand, consultoria especializada na gestão de marcas. Para a grande maioria dos consumidores, explica ele, a Coca-Cola ainda reflete energia, a Disney, felicidade e o Citibank, riqueza.

Essas empresas são os primeiros alvos de contestações antiamericanas. Depois de ter agências atacadas na Argentina, o Citibank colocou grades nas entradas de sua sede na Avenida Paulista em São Paulo durante o dia. Somente uma pequena passagem fica aberta, permitindo a passagem de uma pessoa por vez. O número de seguranças uniformizados e à paisana também aumentou. Na entrada do estacionamento a vigilância foi reforçada e atua com mais rigor. As empresas adotam nesses casos a discrição como lema. A UPS, gigante do ramo de entregas, adiou o lançamento de seu novo logotipo, que substituirá o atual, já quarentão. “As companhias não querem associar suas marcas a imagens de sofrimento”, explica Wally Olins, consultor londrino especializado no assunto. No Brasil, a General Motors também adotou essa linha, pois não acredita que tal situação interfira em seus negócios. Segundo a assessoria de imprensa, a montadora tem certeza de que o consumidor a vê como empresa com fortes ligações no País.

A organização de consumidores é algo novo no mundo dos negócios e por isso as companhias ainda desconfiam de seu poder de fogo. Mas há um mês, ativistas do Greenpeace fecharam 100 postos da Esso na Inglaterra, em protesto contra o ataque iminente dos Estados Unidos. Em novembro de 1997, a Nike passou por situação semelhante. A empresa foi acusada de oferecer péssimas condições de trabalho a funcionários (incluindo crianças) de uma fábrica no Vietnã. Os consumidores reagiram. Em dois anos, as ações na Bolsa de Nova York caíram de US$ 74 para US$ 42. Políticos também alimentam o clima de boicote. Há duas semanas, o deputado Chico Alencar (PT-RJ) iniciou uma campanha contra ícones americanos.

“Meu amigo, faça um gesto pela paz e troque por um suco de laranja”, diz ele ao flagrar colegas de plenário com uma Coca. Alencar batizou essa atitude de “patrulha pedagógica”. “Junto com o discurso político, encaixo sempre informações nutricionais”, explica. Além de tudo, a vítima ouve que refrigerante engorda, causa celulite, vicia e por aí afora.

Ao defender suas marcas, companhias americanas protegem aquele que se tornou nos últimos anos o mais valioso de seus patrimônios. Empresas como a Nike despacharam para outros países as linhas de produção e se transformaram em grandes gestoras de marcas. Somente a assinatura da Coca-Cola vale hoje US$ 70 bilhões. O nome Microsoft, outros US$ 64 bilhões. Conscientes desse valor, ou apenas por bom humor, os manifestantes estimulam o boicote subvertendo slogans que acompanham essas marcas. E-mails conclamam consumidores a participar do McDia Infeliz, no qual ninguém compraria sanduíches da rede. Outra corrente sugeria que “tudo fica melhor sem Coca-Cola”, em alusão ao antigo refrão do refrigerante. Por isso, o site oficial da Coca traz uma seção chamada “rumores” para se contrapor aos ataques à marca. Ali a empresa desmente, por exemplo, a história de que, na versão do refrigerante para o Oriente Médio, símbolos gráficos de sua logomarca trariam mensagens subliminares ofensivas aos muçulmanos (“No Mohammed, No Mecca”).

Os protestos recaem sobre fabricantes de produtos de consumo e empresas identificadas com o governo Bush. Microsoft, Disney, GM, Pepsi e Wal Mart, por exemplo, são citados duas vezes na lista de desafetos que os consumidores divulgam pela internet. Essas companhias figuram entre os 30 maiores doadores da campanha republicana, que levou George W. Bush à presidência dos EUA e adotaram desde o início dos protestos uma espécie de lema: business as usual (algo como “tocar os negócios como sempre”). É uma expressão para reafirmar que nada muda com as vozes que vêm das ruas. Alguns especialistas discordam. No domingo anterior ao início dos ataques a Bagdá, Shih-Fen Chen, especialista em marketing, fazia uma avaliação profética: “Uma guerra vai criar uma hostilidade que pode
custar bilhões de dólares às companhias americanas. Basta que apenas 5% da população de um país faça um boicote para ferir fundo essas empresas.”


Com reportagem de Christian Cruz e Fabiana Parajara. Matéria publicada na revista IstoÉ Dinheiro, 02/04/2003. O original deste artigo está em http://www.terra.com.br/istoedinheiro/292/economia/292_marcas_feridas.htm