O DECLÍNIO DO IMPÉRIO AMERICANO
por Immanuel Wallerstein [*], 29/03/2003
 

A ascensão dos Estados Unidos à hegemonia global foi um processo longo que começou de facto com a recessão mundial de 1873. A partir daquela época, os Estados Unidos e a Alemanha começaram a controlar uma fatia cada vez maior dos mercados globais, graças sobretudo ao declínio contínuo da economia britânica. Ambos os países haviam recentemente conquistado bases políticas estáveis: os Estados Unidos com o fim da Guerra Civil e a Alemanha com a unificação após a derrota da França na Guerra Franco-Prussiana.

De 1873 a 1914, os Estados Unidos e a Alemanha tornaram-se os principais produtores em sectores chaves: aço e depois automóveis nos Estados Unidos; química industrial na Alemanha.

Os manuais de história registam que a Primeira Guerra Mundial eclodiu em 1914 e terminou em 1918, e que a Segunda Guerra Mundial durou de 1939 a 1945. No entanto, seria mais razoável considerar as duas como uma única e contínua "guerra de 30 anos" entre os Estados Unidos e a Alemanha, com tréguas e conflitos locais espalhados entre elas.

A competição pela da sucessão hegemonia assumiu um teor ideológico a partir de 1933, quando os nazis chegaram ao poder na Alemanha e iniciaram sua tentativa de transcender o sistema global, não procurando competir pela hegemonia dentro do sistema vigente e sim pela construção de um império global. Lembre-se do slogan nazi "ein tausendjähriges Reich" (um império de mil anos). Por sua vez, os Estados Unidos assumiram o papel de defensores do liberalismo centrista mundial -- recordem-se as "quatro liberdades" do ex-presidente americano Franklin D. Roosevelt (liberdade de expressão, de religião, de necessidades materiais e do medo) -- e entraram numa aliança estratégica com a União Soviética, possibilitando a derrota da Alemanha e seus aliados.

A Segunda Guerra Mundial resultou numa enorme destruição de infra-estruturas e de populações por toda a Eurásia, do Oceano Atlântico ao Pacífico, e poucos países escaparam às mesmas. A única grande potência industrial do mundo a sair intacta e até reforçada, numa perspectiva económica, foram os Estados Unidos -- eles actuaram rapidamente para consolidar esta posição.

Mas a aspiração à hegemonia teve de enfrentar alguns obstáculos políticos práticos. Durante a guerra, as potências aliadas concordaram em fundar as Nações Unidas e esta foi formada basicamente pelos países que participaram da coalizão contra as potências do Eixo. A característica crucial da organização era o Conselho de Segurança, a única estrutura que poderia autorizar o uso da força. Como a Carta da ONU deu o direito de veto a cinco potências, incluindo os Estados Unidos e a União Soviética, o Conselho de Segurança tornou-se inoperacional. Assim, não foi a fundação das Nações Unidas em Abril de 1945 que determinou as limitações geopolíticas da segunda metade do século 20 e sim a Conferência de Ialta, dois meses antes, entre Roosevelt, o primeiro-ministro britânico Winston Churchill e o líder soviético José Stalin.

Os acordos formais de Ialta foram menos importantes do que os acordos informais tácitos, que só são perceptíveis se se observar o comportamento dos Estados Unidos e da União Soviética ao longo dos anos seguintes. Quando a guerra terminou na Europa, em 8 de maio de 1945, tropas soviéticas e ocidentais (isto é, americanas, britânicas e francesas) situavam-se em determinados locais sobre o terreno, basicamente acompanhando uma linha no centro da Europa, que passou a ser chamada de Linha Oder-Neisse. Excepto por alguns pequenos acertos, elas ali permaneceram. Em retrospectiva, Ialta significou um acordo entre ambos os lados de que elas poderiam ali ficar e de que nenhum lado usaria a força para expulsar o outro. Esse acordo tácito também se aplicava à Ásia, como provam a ocupação do Japão pelos Estados Unidos e a divisão da Coreia. Politicamente, portanto, Ialta foi um acordo sobre o status quo em que a União Soviética passou a controlar cerca de um terço do mundo e os Estados Unidos o restante.

Washington também enfrentou desafios militares mais sérios. A União Soviética tinha as maiores forças terrestres do mundo, ao passo que o governo americano enfrentava pressão interna para reduzir seu Exército, inclusive com a extinção do serviço militar obrigatório.

Os Estados Unidos, portanto, decidiram afirmar seu poderio militar não por meio de forças terrestres, mas por meio do monopólio das armas nucleares (e uma força aérea capaz de transportá-las). Esse monopólio teve curta dura: desapareceu em 1949, pois a União Soviética também desenvolveu armas nucleares.

Desde então, os Estados Unidos ficaram reduzidos a tentar evitar a proliferação mundial de armas nucleares (e armas químicas e biológicas), uma iniciativa que não parece bem fadada no século XXI.

Até 1991, os Estados Unidos e a União Soviética coexistiram no "equilíbrio do terror" da Guerra Fria. Essa situação foi testada cegamente apenas três vezes: no bloqueio de Berlim, em 1948-49, na Guerra da Coreia, em 1950-53, e na crise dos mísseis cubanos, em 1962. O resultado em cada caso foi a restauração do status quo. Além disso, sempre que a União Soviética enfrentou uma crise política em seus regimes satélites -- Alemanha Oriental em 1953, Hungria em 1956, Checoslováquia em 1968 e Polónia em 1981 --, os Estados Unidos efectuaram pouco mais que exercícios de propaganda, permitindo que a União Soviética agisse à sua vontade.

É claro que essa passividade não se estendia à área económica. Os Estados Unidos aproveitaram o ambiente da Guerra Fria para lançar iniciativas maciças de reconstrução económica, primeiro na Europa Ocidental e depois no Japão (assim como na Coreia do Sul e em Taiwan). O raciocínio era óbvio: de que servia ter uma superioridade produtiva tão esmagadora se no resto do mundo não houvesse procura efectiva?

Além disso, a reconstrução económica ajudava a criar obrigações clientelistas por parte dos países que recebiam a ajuda americana; esse sentido de obrigação promovia a disposição para entrar em alianças militares e, mais ainda, à subserviência política.

Finalmente, não se deve subestimar o componente ideológico e cultural da hegemonia americana. O período imediatamente posterior a 1945 pode ter sido o auge histórico da popularidade da ideologia comunista. É fácil esquecer hoje as enormes votações obtidas por Partidos Comunistas em eleições livres em países como Bélgica, França, Itália, Checoslováquia e Finlândia, sem falar no apoio que os Partidos Comunistas obtiveram na Ásia -- Vietname, Índia, Japão -- e por toda a América Latina. E isso ainda sem considerar áreas como China, Grécia e Irão, onde não houve eleições livres ou estas foram restritas, mas onde os Partidos Comunistas locais desfrutavam de um apoio generalizado. Em reacção, os Estados Unidos mantiveram uma maciça ofensiva ideológica anticomunista.

Em retrospectiva, essa iniciativa parece amplamente bem sucedida: Washington desempenhou seu papel como líder do "mundo livre" de modo pelo menos tão eficaz quanto a União Soviética desempenhava o seu como líder do campo "progressista" e "anti-imperialista".

O êxito dos Estados Unidos como potência hegemónica no período do pós-guerra criou as condições para o colapso hegemónico do país. Esse processo é bem descrito por quatro eventos simbólicos: a Guerra do Vietname, as revoluções de 1968, a queda do Muro de Berlim em 1989 e os atentados terroristas de setembro de 2001. Cada evento ergueu-se sobre o anterior, culminando na situação em que os Estados Unidos hoje se encontram: uma superpotência solitária, que carece de verdadeiro poder, um líder mundial que ninguém segue e poucos respeitam e um país que flutua perigosamente em meio ao caos global que não pode controlar.

O que foi a Guerra do Vietname? Foi sobretudo o esforço do povo vietnamita para acabar com o domínio colonial e estabelecer o seu próprio Estado. Os vietnamitas combateram os franceses, os japoneses e os americanos e no final os vietnamitas venceram -- um grande feito, na verdade. Do ponto de vista geopolítico, contudo, a guerra representou a rejeição ao status quo de Ialta por populações então rotuladas como Terceiro Mundo. O Vietname tornou-se um símbolo muito poderoso, porque Washington foi suficientemente estúpida para investir todo o seu poderio militar naquela luta e, mesmo assim, os Estados Unidos perderam. É verdade que os Estados Unidos não utilizaram armas nucleares (decisão que certos grupos míopes de direita muito criticaram), mas a sua utilização teria destruído os acordos de Ialta e poderia ter produzido um holocausto nuclear, resultado que os Estados Unidos simplesmente não poderiam arriscar.

Mas o Vietname não foi simplesmente uma derrota militar ou uma maldição para o prestígio americano. A guerra desferiu um grande golpe contra a capacidade de os Estados Unidos continuarem a ser a potência económica dominante no mundo. O conflito saiu extremamente caro e praticamente esgotou as reservas de ouro dos Estados Unidos, que eram abundantes desde 1945.

Além disso, os Estados Unidos enfrentaram essas despesas exactamente quando a Europa Ocidental e o Japão experimentavam grande crescimento económico. Esse condicionamento pôs fim ao predomínio americano na economia global.

Desde os fins da década de 60 os membros dessa tríade têm sido praticamente equivalentes em termos económicos, cada um a desempenhar-se melhor durante certos períodos, mas sem que nenhum se distancie demasiado dos outros.

Quando as revoluções de 1968 irromperam por todo o mundo, o apoio aos vietnamitas tornou-se um importante componente retórico. "Um, dois, muitos Vietnames" e "Ho, Ho, Ho Chi Minh" foram entoados em muitas ruas do mundo todo, inclusive nos Estados Unidos. Mas a geração de 68 não condenava apenas a hegemonia americana. Condenava a conivência soviética com os Estados Unidos, condenava Ialta e usou ou adaptou a linguagem da Revolução Cultural chinesa, que dividia o mundo em dois campos: as duas superpotências e o resto do mundo.

A denúncia da conivência soviética levou logicamente à denúncia das forças nacionais intimamente aliadas à União Soviética, o que na maioria dos casos significava os partidos comunistas tradicionais. Mas os revolucionários de 1968 também atacaram outros componentes da Velha Esquerda -- os movimentos de libertação nacional no Terceiro Mundo, os movimentos social-democratas na Europa e os democratas do New Deal nos Estados Unidos, acusando-os também de conivência com aquilo que os revolucionários chamavam genericamente de "imperialismo americano".

O ataque à conivência soviética com Washington, mais o ataque contra a Velha Esquerda, enfraqueceu ainda mais a legitimidade dos acordos de Ialta sobre os quais os Estados Unidos haviam moldado a ordem mundial. Ele também minava a posição do liberalismo centrista como a única e legítima ideologia global. As consequências políticas directas das revoluções mundiais de 68 foram mínimas, mas as repercussões geopolíticas e intelectuais foram enormes e irrevogáveis. O liberalismo de centro caiu do trono que ocupara desde as revoluções europeias de 1848 e que lhe permitira incluir tanto conservadores quanto radicais. Tais ideologias retornaram e mais uma vez representaram um verdadeiro leque de opções. Os conservadores tornar-se-iam novamente conservadores, e os radicais, radicais. Os liberais de centro não desapareceram, mas foram reduzidos. Nesse processo, a posição ideológica oficial dos Estados Unidos --antifascista, anticomunista, anticolonialista -- parecia frágil e inconveniente para uma proporção cada vez maior das populações mundiais.

O início da estagnação económica internacional na década de 70 teve duas consequências importantes para o poderio americano. Primeiro, a estagnação resultou no colapso do "desenvolvimentismo", a ideia de que cada país poderia avançar economicamente se o Estado tomasse medidas adequadas, que constituía a principal reivindicação ideológica dos movimentos da Velha Esquerda então no poder.

Esses regimes enfrentaram distúrbios internos sucessivos, com o declínio doa padrões de vida, dívidas crescentes, a dependência em relação às instituições financeiras internacionais e a erosão de sua credibilidade. O que nos anos 60 parecia ser uma bem sucedida descolonização do Terceiro Mundo com o apoio dos Estados Unidos, minimizando rupturas e maximizando a suave transferência de poder para regimes desenvolvimentistas, mas muito pouco revolucionários, deu lugar à desintegração da ordem, ao descontentamento turbulento e a temperamentos radicais não canalizados.

Nos lugares em que os Estados Unidos tentaram intervir, fracassaram. Em 1983, o presidente Ronald Reagan mandou tropas para o Líbano a fim de restaurar a ordem. Na realidade as tropas foram praticamente expulsas dali. Ele compensou invadindo Granada, um país sem tropas.

O presidente George Bush invadiu o Panamá, outro país sem tropas. Mas, depois, interveio na Somália para restaurar a ordem, e os Estados Unidos foram na verdade expulsos de um modo ignominioso. Como havia pouco que o governo americano realmente pudesse fazer para inverter essa tendência de declínio da hegemonia, ele preferiu simplesmente ignorá-la tendência, uma política que prevaleceu desde a retirada do Vietname até 11 de Setembro de 2001.

Uma hipótese para a impotência dos EUA

Enquanto isso, os verdadeiros conservadores começaram a assumir o controle de países-chave e instituições internacionais. A ofensiva neoliberal dos anos 80 foi marcada pelos regimes Thatcher e Reagan e pelo surgimento do FMI como um actor-chave no cenário mundial. Antes (ao longo de mais de um século), as forças conservadoras tentavam auto-apresentar-se como liberais e sensatas. Agora, os liberais de centro eram obrigados a argumentar que eram conservadores mais eficazes.

Os programas conservadores eram claros. No plano interno, os conservadores tentavam implementar políticas que reduzissem o custo do trabalho, minimizando as restrições ambientais aos produtores e cortando os benefícios do bem-estar estatal (welfare state) . Os êxitos verdadeiros foram modestos, por isso os conservadores passaram a actuar vigorosamente na arena internacional.

As reuniões do Fórum Económico Mundial em Davos constituíram um campo de encontro para as elites e os media. O FMI representava um clube para ministros das Finanças e banqueiros centrais. E os Estados Unidos pressionaram pela criação da Organização Mundial do Comércio, destinada a promover fluxos comerciais livres através das fronteiras mundiais.

Quando os Estados Unidos não estavam a olhar, a União Soviética desmoronou. Sim, Ronald Reagan chamara a União Soviética de "império do mal" e usara a retórica bombástica de pedir a destruição do Muro de Berlim, mas os Estados Unidos realmente não pretendiam e certamente não foram responsáveis pela queda da União Soviética. Na verdade, a União Soviética e sua zona imperial no Leste Europeu desabou devido à desilusão popular com a velha esquerda, em conjunto com iniciativas do líder soviético Mikhail Gorbatchov para salvar seu regime, liquidando Ialta e instituindo a liberalização interna (perestroika mais glasnost). Gorbatchov conseguiu liquidar Ialta, mas não salvar a União Soviética (embora quase o tenha conseguido, deve-se dizer).

Os Estados Unidos ficaram surpresos e atónitos com o colapso súbito, sem saber como enfrentar as consequências. O colapso do comunismo significou na verdade o colapso do liberalismo, removendo a única justificação ideológica que respaldava a hegemonia americana, uma justificativa tacitamente apoiada pelo adversário ideológico ostensivo do liberalismo. Essa perda de legitimidade conduziu directamente à invasão do Kuwait pelo Iraque, que o líder iraquiano Saddam Hussein jamais teria ousado se os acordos de Ialta continuassem em vigor.

Em retrospectiva, as iniciativas americanas na Guerra do Golfo obtiveram basicamente uma trégua na linha de partida. Mas uma potência hegemónica pode-se satisfazer com um empate numa guerra com um poder regional mediano? Saddam demonstrou que era possível entrar numa briga com os Estados Unidos e sair inteiro. Ainda mais que a derrota no Vietname, o desafio ousado de Saddam revolveu as entranhas da direita americana, particularmente as dos chamados falcões, o que explica o fervor de seu actual desejo de invadir o Iraque e destruir seu regime.

Entre a Guerra do Golfo e o 11 de setembro de 2001, as duas principais arenas de conflito mundial foram os Balcãs e o Oriente Médio. Os Estados Unidos desempenharam importante papel diplomático em ambas as regiões. Olhando em retrospectiva, quão diferentes seriam os resultados se os Estados Unidos tivessem assumido uma posição totalmente isolacionista? Nos Balcãs, um Estado multinacional economicamente bem sucedido (Jugoslávia) desmoronou, basicamente em suas partes componentes. Durante dez anos, a maioria dos Estados resultantes iniciou um processo de etnificação, experimentando uma violência brutal, amplas violações de direitos humanos e guerras. A intervenção externa, em que os Estados Unidos actuaram de modo destacado, levou a uma trégua e pôs fim à violência mais evidente, mas essa intervenção de modo nenhum reverteu a etnificação, que hoje está consolidada e de certa forma legitimada.

Esses conflitos teriam terminado de modo diferente sem o envolvimento americano? A violência poderia ter continuado por mais tempo, mas os resultados básicos provavelmente não teriam sido muito diferentes. O quadro é ainda mais grave no Oriente Médio, onde o envolvimento dos Estados Unidos foi mais profundo, e seus fracassos, mais espectaculares. Nos Balcãs e no Oriente Médio igualmente, os Estados Unidos deixaram de exercer seu poder hegemónico com eficácia não por falta de vontade ou de esforço, mas por falta de verdadeiro poder.

Então veio o 11 de Setembro, o choque e a reacção. Sob o fogo dos legisladores americanos, a CIA hoje afirma que havia advertido o governo Bush sobre possíveis ameaças. Mas, apesar do enfoque da CIA sobre a Al Qaeda e a perícia da inteligência do órgão, ela não pôde prever (e portanto evitar) a execução dos ataques terroristas. Foi o que afirmou o director da CIA, Robert Tenet. Esse depoimento dificilmente pode tranquilizar o governo ou o povo americanos.

Seja o que for que os historiadores decidam, os atentados de 11 de Setembro de 2001 representaram um grande desafio ao poderio americano. Os indivíduos responsáveis não representavam uma grande potência militar. Eram membros de uma força não estatal, com alto grau de determinação, algum dinheiro, um grupo de seguidores dedicados e uma forte base em um Estado fraco. Em suma, não eram nada militarmente. No entanto, tiveram êxito num ataque ousado ao solo americano.

George W. Bush chegou ao poder criticando muito o trabalho do governo Clinton nos assuntos externos. Bush e seus assessores não o admitiram, mas sem dúvida estavam conscientes de que o caminho de Clinton fora o de todo presidente americano desde Gerald Ford, incluindo os de Ronald Reagan e George Bush pai. E tinha sido até o caminho do actual governo Bush antes do 11 de Setembro. Basta ver como Bush tratou o caso do avião americano derrubado na China em Abril de 2001 para verificar que prudência era o nome do jogo.

Depois dos atentados terroristas, Bush mudou de rumo, declarando guerra ao terrorismo, garantindo ao povo americano que "o resultado é certo" e informando ao mundo que "ou estão do nosso lado ou estão contra nós".

Frustrados há muito, até mesmo pelos mais conservadores governos americanos, os falcões finalmente passaram a dominar a cena política americana. Sua posição é clara: os Estados Unidos detêm um poderio militar esmagador e, embora inúmeros líderes estrangeiros considerem insensato Washington aplicar sua força militar, esses mesmos líderes não podem fazer e não farão qualquer coisa se os Estados Unidos simplesmente impuserem sua vontade ao resto do mundo. Os falcões acreditam que os Estados Unidos devem agir como uma potência imperial por dois motivos: primeiro, os Estados Unidos podem fazer isso; e, segundo, se Washington não exercer sua força, os Estados Unidos ficarão cada vez mais marginalizados.

Hoje essa posição dos falcões tem três expressões: o ataque militar ao Afeganistão, o apoio de facto à tentativa israelense de liquidar a Autoridade Palestina e a invasão do Iraque, que estaria em fase de preparativos militares. Menos de um ano depois dos atentados terroristas de Setembro de 2001, talvez seja cedo demais para avaliar o resultado futuro dessas estratégias.

Até agora, esses esquemas levaram à derrubada dos taliban no Afeganistão (sem o desmantelamento completo da Al Qaeda ou a captura de sua liderança); enorme destruição na Palestina (sem tornar "irrelevante" o líder palestino Iasser Arafat, como pretendia o primeiro-ministro israelense, Ariel Sharon); e a forte oposição dos aliados dos Estados Unidos na Europa e no Oriente Médio aos planos de invasão do Iraque.

A leitura dos factos recentes pelos falcões enfatiza que a oposição às acções americanas, embora séria, continua principalmente verbal. Nem a Europa Ocidental nem a Rússia, a China ou a Arábia Saudita parecem dispostas a romper seriamente os laços com os Estados Unidos. Por outras palavras, os falcões acreditam que Washington realmente conseguiu desenvencilhar-se. Os falcões supõem que um resultado semelhante virá a ocorrer quando os militares americanos realmente invadirem o Iraque e, depois, quando os Estados Unidos exercerem sua autoridade em outras partes do mundo, seja no Irão, na Coreia do Norte, na Colômbia ou talvez na Indonésia.

Ironicamente, a leitura dos falcões tornou-se de modo geral a leitura da esquerda internacional, que vem gritando contra as políticas americanas principalmente por temer que as probabilidades de êxito dos EUA sejam elevadas. Mas as interpretações dos falcões estão erradas e apenas contribuirão para o declínio dos EUA, transformando uma descida gradual numa queda muito mais rápida e turbulenta. Especificamente, as abordagens dos falcões irão fracassar por motivos militares, económicos e ideológicos.

Os militares continuam a ser, sem dúvida, a carta mais forte dos EUA; na verdade, a única carta. Hoje os Estados Unidos possuem a mais formidável máquina militar do mundo. E, a acreditar-se nos anúncios de novas e incomparáveis tecnologias militares, a vantagem americana sobre o resto do mundo é consideravelmente maior hoje do que uma década atrás. Mas significará isso que os EUA podem invadir o Iraque, conquistá-lo rapidamente e instalar um regime amigo e estável? É improvável. Tenha-se em mente que, das três guerras sérias que os EUA travaram desde 1945 (Coreia, Vietname e Golfo), uma terminou em derrota e duas em retirada após aquilo que poderia ser chamado de "empate" -- não é exactamente um registro glorioso.

O Exército de Saddam não é o dos taliban e o controle interno dos seus militares é muito mais firme. Uma invasão americana envolveria necessariamente uma importante força terrestre, que teria de abrir caminho até Bagdad e provavelmente sofreria baixas significativas. Essa força também precisaria de bases como pontos de partida para os combates e a Arábia Saudita deixou claro que não ajudará nesse sentido. O Kuwait ou a Turquia ajudarão? Talvez, se Washington utilizar todas as suas fichas.

Enquanto isso, pode-se esperar que Saddam utilize todas as armas à sua disposição e é exactamente o que inquieta o governo americano: que essas armas possam ser muito malignas. Os EUA podem torcer os braços dos regimes da região, mas o sentimento popular vê todo o assunto como o reflexo de um profundo viés anti-árabe nos EUA. Esse conflito pode ser vencido? O estado-maior britânico já informou ao primeiro-ministro Tony Blair que não acredita nisso.

E sempre há a questão das "segundas frentes". Depois da Guerra do Golfo, as Forças Armadas americanas tentaram preparar-se para a possibilidade de duas guerras regionais simultâneas. Depois de algum tempo, o Pentágono abandonou silenciosamente a ideia, por ser impraticável e dispendiosa. Mas quem pode ter certeza de que nenhum potencial inimigo atacará quando os EUA estiverem atolados no Iraque?

Considere-se também a questão da tolerância popular americana às não-vitórias. Os americanos oscilam entre um fervor patriótico que apoia todos os presidentes em tempo de guerra e um profundo sentimento isolacionista. Desde 1945, o patriotismo chocou-se com um muro sempre que as baixas aumentaram. Por que a reacção seria diferente hoje? E, mesmo que os falcões (quase todos civis) se sintam impermeáveis à opinião pública, os generais americanos, queimados pelo Vietname, não se sentem.

E a frente económica? Nos anos 80, inúmeros analistas americanos ficaram histéricos quanto ao milagre económico japonês. Eles acalmaram-se nos anos 90, diante das conhecidas dificuldades financeiras do Japão. Mas, depois de exageradas declarações sobre o avanço rápido do Japão, as autoridades americanas hoje parecem tranquilas, confiantes em que o Japão está muito atrás. Hoje em dia, Washington parece mais inclinada a mostrar aos decisores das políticas japonesas o que eles estão a fazer errado.

Esse triunfalismo dificilmente parece garantido. Considere a seguinte reportagem do New York Times de 20/Abril/2002: "Um laboratório japonês construiu o computador mais rápido do mundo, uma máquina tão poderosa que se equipara ao poder de processamento dos 20 mais rápidos computadores americanos juntos e supera de longe o líder anterior, uma máquina construída pela IBM. A conquista [...] "é a evidência de que a corrida tecnológica, que a maioria dos engenheiros americanos pensava vencer facilmente, está longe de terminar".

A análise continua, comentando que há "prioridades científicas e tecnológicas contrastantes" nos dois países. A máquina japonesa foi construída para analisar mudanças climáticas, mas as máquinas americanas são desenhadas para simular armas.

Esse contraste representa a história mais antiga na história das potências hegemónicas. O poder dominante concentra-se nos militares (em seu detrimento); o candidato a sucessor concentra-se na economia. A última opção sempre foi a mais vantajosa. Foi o que aconteceu com os Estados Unidos. Por que não deveria acontecer também com o Japão, talvez em aliança com a China?

Finalmente, há a esfera ideológica. Hoje, a economia americana parece relativamente fraca, ainda mais considerando-se as exorbitantes despesas militares associadas às estratégias dos falcões. Além disso, Washington continua politicamente isolada; virtualmente ninguém (excepto Israel) acha que a posição do falcão faz sentido ou é digna de incentivo. Outros países temem ou não estão dispostos a enfrentar Washington directamente, mas até sua indecisão está a prejudicar os Estados Unidos.

Mas a reacção americana representa pouco mais que um arrogante braço de força. A arrogância tem suas próprias negativas. Usar as fichas significa deixar menos fichas para a próxima vez, e a aquiescência a contragosto provoca um ressentimento crescente. Durante os últimos 200 anos, os EUA conquistaram uma quantidade considerável de crédito ideológico. Mas, hoje em dia, os EUA estão a gastar esse crédito ainda mais depressa do que gastaram seus excedentes em ouro nos anos 60. Os EUA enfrentam duas possibilidades nos próximos dez anos: podem seguir o caminho dos falcões, com consequências negativas para todos, mas especialmente para o país. Ou, em alternativa, podem perceber que as consequências negativas seriam demasiado grandes.

Simon Tisdall, do "Guardian", argumentou recentemente que, mesmo sem considerar a opinião pública internacional, "os Estados Unidos não são capazes de ter êxito numa guerra no Iraque sozinhos sem incorrer em enormes danos, principalmente em termos de seus interesses económicos e seu abastecimento energético. Bush está reduzido a falar com dureza e a parecer ineficaz". E, se os EUA invadirem o Iraque e forem obrigados a recuar, ele parecerá ainda mais ineficaz.

As opções do presidente Bush parecem extremamente limitadas e não há dúvida de que os EUA continuarão a declinar como força decisiva nos assuntos mundiais na próxima década. A verdadeira questão não é se a hegemonia americana está a decair, mas se os EUA podem encontrar uma maneira de declinar graciosamente, com danos mínimos para o mundo e para si próprios.
 


[*] Investigador na Universidade Yale.  Publicou recentemente "The End of the World As We Know It: Social Science for the Twenty-First Century", Mineapolis, University of Minnesota Press, 1999. Mais textos do autor no Fernand Braudel Center, dirigido por Wallerstein. Este artigo encontra-se em http://resistir.info