A INJUSTA LEI DO MAIS FORTE
por Günter Grass
 

Começou uma guerra, uma guerra que é desejada e planejada há muito tempo. Contrariando todas as objeções e advertências da ONU, a ordem de lançar um ataque preventivo foi dada a um potente aparato militar, contrariando o direito dos povos. Foi desprezado o voto do Conselho de Segurança, ridicularizado e tratado como irrelevante.

Desde 20 de março, impera apenas o direito do mais forte. E, apoiado nessa injustiça, o mais forte tem poder para comprar e recompensar os que querem a guerra e para menosprezar ou até castigar aqueles que não a querem. As palavras do presidente atual dos EUA - "quem não está do nosso lado está contra nós"- trazem um eco de tempos bárbaros para os fatos contemporâneos. Por isso, não é de estranhar que a linguagem do agressor se assemelhe cada vez mais à de seu adversário.
O fundamentalismo religioso autoriza a ambas as partes abusar do conceito de "Deus" que têm todas as religiões, fazendo esse "Deus" refém de sua própria interpretação fanática. Foi inútil até mesmo a apaixonada advertência do Papa, que conhece bem a desgraça persistente causada pela mentalidade e a prática cristã da cruzada.

Dispersos, impotentes, mas irados, contemplamos a decadência moral da única potência mundial líder e desconfiamos que a loucura organizada terá uma consequência indubitável: servirá de motivação para um terrorismo crescente, de violência respondendo a outra violência.

Serão esses, ainda, os EUA dos quais, por muitas razões, guardamos uma lembrança tão boa? Será esse país o generoso doador do Plano Marshall? O benévolo mestre da disciplina da democracia? O sincero crítico dele mesmo? O país que, em outra época, ajudou o processo da Ilustração européia a superar o domínio colonial, dotou-se de uma Constituição que serviu de modelo para outros países e considerou a liberdade de expressão um direito humano irrenunciável?

Não apenas vimos essa imagem - que, com o passar dos anos, vinha se tornando cada vez mais ilusória - empalidecer, transformando-se numa imagem distorcida dela mesma. Também muitos cidadãos dos EUA que amam seu país se sentem horrorizados com a derrocada dos valores americanos e com a arrogância do poder que têm em casa.

Sinto-me unido a eles. Ao lado deles, sou pró-americano confesso. Protesto com eles contra a injustiça do mais forte, contra as restrições à liberdade de expressão, contra uma política de informação que, comparativamente, se pratica apenas nos Estados totalitários e contra qualquer cálculo cínico que, depois de morrerem milhares de mulheres e crianças, considera que isso é aceitável se se trata de defender interesses econômicos e políticos.

Não, não é o antiamericanismo que prejudica a imagem dos EUA, não são o ditador Saddam Hussein e seu país, em grande medida desarmado, que ameaçam a potência mais forte do mundo - são o presidente Bush e seu governo que agem no sentido de derrubar os valores democráticos, que prejudicam seu país, que ignoram as Nações Unidas e que assombram o mundo com esta guerra contrária ao direito internacional.

A nós, alemães, já nos perguntaram com freqüência se sentimos orgulho de nosso país. A resposta não era fácil. E havia razões para nossa hesitação. Posso afirmar que a rejeição à guerra preventiva que vem se manifestando até agora entre a maioria dos cidadãos de meu país me levou a sentir orgulho da Alemanha. Depois de duas guerras mundiais com conseqüências criminosas, pelas quais temos que responder, aprendemos com a história.

Desde 1990 a República Federal da Alemanha é um Estado soberano. Pela primeira vez, o governo fez uso dessa soberania e teve a bravura necessária para contradizer os poderosos aliados, impedindo que a Alemanha recaísse num comportamento imaturo.

Agradeço ao chanceler federal, Gerhard Schroeder, e a seu ministro das Relações Exteriores, Joschka Fischer, por sua firmeza, eles que, apesar de todo o assédio e todas as calúnias, tanto externas quanto internas, continuaram sempre a ser dignos de crédito.

É possível que muitos se sintam desanimados. Há razões para tanto. Mas não devemos deixar que se extingam nem nosso "não" à guerra, nem nosso "sim" à paz. O que aconteceu? A pedra que empurrávamos montanha acima voltou a rolar até o sopé. Mas nós a empurraremos outra vez, embora desconfiemos que, assim que chegar lá no alto, ela voltará a nos aguardar no sopé da montanha. Pelo menos isso representa um protesto e uma oposição intermináveis, e é isso que continuará humanamente possível.
 


O escritor alemão Günter Grass venceu o Prêmio Nobel de Literatura em 1999. Este artigo foi publicado originalmente em El Pais, de Madri, e está em http://www.elpais.es, disponível apenas para assinantes. Tradução de Clara Allain.