EXPOSTAS AS MENTIRAS ANGLO-AMERICANAS
Robert Fisk para The Independent - 24/03/2003
Tradução de Sérgio Cardoso Morales.
 

Até agora, as tropas anglo-americanas estão deixando a bola quicando para os iraquianos chutar em termos de propaganda. Primeiro, no sábado, fomos informados – cortesia da BBC – que Umm Qasr, o pequeno porto marítimo iraquiano no golfo, havia "caído". Por que cidades têm de "cair", na BBC, é um mistério para mim; a expressão vem da Idade Média, quando as muralhas das cidades, literalmente, ruíam sob cerco. Então, somos informados – de novo pela BBC – que Nassariyah fora capturada. Então, seu correspondente "embedded" nos informou – e, aqui, minha velha intuição jornalística entrou em alerta – que a cidade havia sido "assegurada".

Repórteres "embedded" são aqueles que acompanham as forças americanas ou britânicas – e que estão, agora, sujeitos à censura com que a BBC tem, de boa vontade, mal-informado seus ouvintes, não só na Grã-Bretanha, mas em todo o mundo.

Por que a BBC usaria a prostituída expressão militar "assegurada" é, igualmente, um mistério para mim. "Assegurada" pretende dar a idéia de "capturada", mas, quase invariavelmente, significa, no tipo de jargão que os jornalistas "embedded" agora usam, que a cidade foi contornada ou quase cercada, ou, no máximo, que o exército invasor tão somente penetrou em seus arredores. E, de fato, 24 horas depois, a cidade xiita, a oeste da confluência dos rios Tigre e Eufrates, se mostrou não muito assegurada, de fato, não invadida de nenhuma forma – porque, pelo menos, 500 soldados iraquianos, apoiados por tanques, estavam ainda lutando.

Uma certa hora, no sábado, a BBC nos apresentou um repórter "embedded" "em Basra". Esta informação se desvaneceu quando o correspondente admitiu que não estava "exatamente em Basra"; logo depois, o apresentador da BBC, em Londres, teve de concluir a reportagem dizendo que o dito correspondente estava "no sul do Iraque". De fato.

Mas não são as bobagens que estes jornalistas estão produzindo aos borbotões que nos interessam. É o ouro que eles estão entregando para os iraquianos. Com que prazer o vice-presidente iraquiano, Taha Yassin Ramadan, nos informou a todos, ontem, que "eles alegaram ter capturado Umm Qasr, mas, agora, vocês sabem que é mentira." Com que alegria o ministro iraquiano de informações, Mohamed Said Al-Sahhaf, anunciou, ontem, que Basra estava, ainda, "em mãos iraquianas", que "nossas forças", em Nassariyeh, estavam, ainda, lutando.

E podiam, com justiça, comemorar, pois, a despeito de toda a fanfarronice alardeada por americanos e britânicos no Catar, o que os iraquianos estavam dizendo era verdade. As costumeiras alegações iraquianas de que tinham derrubado aeronaves americanas e britânicas – quatro, supostamente "atingidas" nas cercanias de Bagdá, e uma outra, próximo a Mossul – tiveram credibilidade depois que os iraquianos foram capazes de demonstrar que o colapso de suas forças no sul era falso – muito diferente da filmagem de prisioneiros, obtida na noite passada. De fato, o governo iraquiano está, aos poucos, coordenando sua propaganda e foi capaz, ontem – cortesia de um verdadeiro veterano oficial do exército (general Hazim Al-Rawi) – de ler o que, se alegou, seriam os últimos três relatórios de suas unidades em Basra e nos pântanos mais ao norte da cidade. Informavam que 77 civis tinham sido "martirizados" pelas bombas de fragmentação americanas lançadas sobre Basra.

Não são somente as distorcidas reportagens americanas e britânicas que vêm do que uma vez já se chamou de "pool". É também o que sabemos que não é divulgado. Nós sabemos, por exemplo, que os americanos estão, novamente, usando munição com urânio empobrecido, no Iraque, exatamente como fizeram em 1991. Antes da guerra começar, eles afirmaram que tencionavam usar estes projéteis, que são fabricados com resíduos da indústria nuclear – para perfurar blindados – e que muitos acometidos pela Síndrome da Guerra do Golfo e médicos iraquianos acreditam ser responsáveis pela proliferação de casos de câncer. Ontem, a BBC nos informou que os fuzileiros navais americanos tinham chamado aviões bombardeiros A-10 para dar conta de "bolsões de resistência" – um pouco mais de jargão militar da BBC – mas omitiram a menção de que os A-10 usam munição com urânio empobrecido. Assim, pela primeira vez desde 1991, nós – ocidentais – estamos, hoje, espargindo estes aerossóis de urânio em explosões sobre os campos de batalha no sul do Iraque; e ninguém nos diz isso. Por que não?

E de onde, pelo amor de Deus, eles tiraram aquela miserável e completamente desonesta expressão "exércitos da coalizão"? Não há "exércitos da coalizão" nesta guerra contra o Iraque. Há os americanos e os britânicos e um punhado de australianos. Só isso.

A "coalizão" da Guerra do Golfo de 1991 não existe. A "coalizão" das nações que desejam "auxiliar" neste conflito ilegítimo inclui, forçando a imaginação, até mesmo a Costa Rica e a Micronésia e, eu desconfio, a pobre da neutra Irlanda, com sua permissão de escala para os aviões militares americanos na base aérea Shannon. Mas não são "exércitos da coalizão". Por que a BBC usa esta expressão? Eu pergunto de novo: por quê? Mesmo na Segunda Guerra Mundial, que muitos jornalistas pensam que estão, agora, narrando, não usamos esta mentira. Quando desembarcamos na costa da África do Norte, na Operação Tocha, nós o chamamos "desembarque anglo-americano".

E esta é uma guerra anglo-americana, quer nós – e eu incluo aqui os "embedded" – queiramos ou não. Os iraquianos são espertos o bastante para nos lembrarem disto. Primeiro, anunciaram que os soldados americanos ou britânicos capturados seriam tratados como mercenários, uma decisão que Saddam mesmo, sabiamente, corrigiu, ontem, quando afirmou que todos os prisioneiros seriam tratados "de acordo com a Convenção de Genebra".

No fim das contas, este não foi um grande fim-de-semana para os senhores Bush e Blair. Nem, é claro, para Saddam, embora ele tenha participado de guerras por, pelo menos, metade do tempo de vida de Blair. Um de nossos próprios aviões Tornado foi derrubado pelos americanos – depois que os britânicos perderam soldados em três acidentes de helicóptero – e nós nem conseguimos tomar completamente a primeira cidade além da fronteira do Kuwait. E até aqueles jornalistas que, com muita coragem, tentaram ver por si mesmos o que estava acontecendo sem a proteção de seus exércitos – uma equipe da ITV, por exemplo, próximo a Nassiriyeh – estão em perigo mortal.

Então, eis uma questão de alguém que acreditava, há apenas uma semana atrás, que Bagdá simplesmente ruiria, que nós acordaríamos, uma manhã, e encontraríamos a milícia do partido Baath e o exército iraquiano eliminada e os americanos passeando pela rua Saadun com seus rifles no ombro. Se os iraquianos podem resistir a tão avassalador poder, em Umm Qasr, durante quatro dias, se eles podem continuar lutando em Basra e Nassariyeh – esta última, uma cidade que, por pouco tempo, rebelou-se em uma bem-sucedida revolta contra Saddam em 1991 – por que o exército de Saddam não continuaria a lutar em Bagdá?

Certamente, a história do Iraque não estará completa sem uma nova narrativa de "martírio" na eterna luta do país contra invasores estrangeiros. Os últimos combatentes de Umm Qasr tornar-se-ão, nos anos que virão – qualquer que seja o destino de Saddam – personagens de canções e lendas. Os egípcios, há muito tempo, fizeram o mesmo com seus soldados mortos no Suez, em 1956.

É claro, isto pode ser uma avaliação errada. A resistência pode ser mais débil do que pensamos. Mas, de repente, neste fim-de-semana, uma guerra rápida e fácil, o conflito de "choque e temor" – a expressão do Pentágono é, ela mesma, um mote clássico das páginas da velha revista nazista "Signal" – não parece tão realista. As coisas estão indo mal. Não estamos dizendo a verdade. E os iraquianos estão aproveitando os furos.
 


Original em http://www.arabnews.com/Article.asp?ID=24171