O DIÁRIO DO DESASSOSSEGO
por Marco Antonio Schuster
 

O engenheiro Ricardo Keller vistoriava, há dois anos, a demolição de um pequeno prédio da rua General Canabarro quando encontrou um pacote com papéis escritos e uns disquetes. Aquela é uma região da cidade onde arquitetura do início e metade do século 20 está mais bem preservada.

Ano passado, Ricardo me entregou os papéis: "Não entendi nada, tu, que é jornalista, talvez decifre a ordem disso, e quem, afinal, é o autor". Também enfrento esta dificuldade. Por isso, transcrevo partes dos textos.
 


A vida está tranqüila. O expediente começa e termina sempre nos mesmos horários, o ônibus não se atrasa, o relógio funciona regularmente, o salário sempre chega no dia esperado. Causa um pouco de desconforto a semelhança com a rotina de Bernardo Soares, conhecido de Fernando Pessoa, descreveu no "Livro do Desassossego". Mas não, nada de profundos abalos. Morar num apartamento de um quarto, sala e cozinha num prédio de quatro andares em Porto Alegre tem suas diferenças com morar numa sobreloja de dois quartos de Lisboa. Além disso, tem a televisão, que Bernardo Soares não tinha.

Esta tranqüilidade atinge-se com o tempo e com opções - ou inações. Uma família certamente traz certo agito na vida. É preciso dividir espaços e preferências com outra pessoa, ensinar os filhos a caminhar, a falar, a usar o banheiro e outras coisas que significam viver em sociedade.

Aos domingos, a rua fica mais silenciosa com sua mão única sem trânsito. Muita gente vai à Igreja duas quadras adiante, volta conversando e reserva o frango grelhado no restaurante embaixo.

Comer no restaurante é uma boa solução. Não se precisa lavar os pratos nem nada e ainda se pode conversar com conhecidos durante um aperitivo. Nos dias de sol do inverno alguns jogam dominó enquanto esperam o almoço. No verão, Rubem persegue, com êxito inigualável, as moscas que tentam prejudicar o conceito do seu restaurante.

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Tenho um casaco muito útil. E estranho. Ele fica cada vez mais pesado. Serve para o frio e para a chuva. Para o calor e para a praia. Esvazio-lhe os bolsos. Tiro o pó. Remendo os rasgos. Mas ele sempre pesa mais. Cada vez mais. Curva-me as costas e dificulta-me os passos. Obriga-me a usá-lo. Uma vez, decidido, joguei-o no fundo do armário. Não adiantou.

Pesa tanto que me curva mesmo quando não uso. Meu casaco já não me deixa caminhar.

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Sábados são intervalos intrigantes na vida. Não são domingos e não são dias de semana. São dias indecisos entre trabalhar e folgar. São lentos no verão e escuros no inverno. Para muitos, são ressaca das sextas, para outros, véspera da noite ou dos domingos. Tenho uma vizinha  jornalista, mais ou menos minha contemporânea, já pôs filhos no mundo e marido para fora de casa. Hoje, é solitária. Às vezes, ficamos solitários juntos, sábados à tarde. Ela trabalha enlouquecidamente para ganhar menos que eu. Minha primeira atividade do dia é ouvir o rádio. No escritório, tem todos os jornais da cidade - e alguns de fora - para a gente ler. Um dia, concluímos: meu trabalho depende do trabalho dela - informações públicas - no entanto,  eu trabalho menos e ganho melhor salário.

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Minha vizinha jornalista escreve. Poesias. Sugeri que publicasse em algum segundo caderno, ou suplemento cultural. Afinal, jornalistas conhecem jornalistas e têm contatos. Ela disse que conversou com o editor de cultura do seu jornal, mas o cara disse que era meio problemático, ética e quê sei eu mais, publicar um texto de alguém que trabalhava no jornal enquanto uma porção de poetas não tinha espaço. Falou com um editor de outro jornal e este respondeu que era muito complicado publicar um texto de quem trabalha num jornal concorrente. Ontem, li um colunista tratando do livro que está lançando.

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Vinícius de Morais no "Samba da Benção" acha melhor ser alegre que ser triste. "Mas para fazer um samba com beleza é preciso um bocado de tristeza". Esse cara nunca foi triste. A tristeza não é bela. A tristeza é um monstro.

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Mundo moderno. O escritório decidiu comprar computadores. Vão dar curso para todos. Tenho medo de perder o emprego se não aprender. Dizem que isso de informática - até as palavras desta novidade são diferentes - é para jovens. Estou longe disso, mas não me assusto: eu não aprendo nada, apenas faço o que mandam fazer. Não será diferente com estas máquinas sem fita.
 
 

Marco Antonio F. Schuster - Jornalista
marcoschuster@portoweb.com.br
 
 



O citado "Livro do desassossego" só foi publicado em 1982,
quase 50 anos após a morte de Fernando Pessoa.
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