[ NÃO 80 ]
outubro/2004


A SANTIFICAÇÃO TRANSFORMADA
*ronald_augusto
Para comemorar os vinte anos da poesia concreta, Augusto de Campos se deu ao trabalho de selecionar e recolher na revista Corpo Estranho nº.2, 1976, uma série de depoimentos e de juízos pseudo-críticos que, então dispersos pelo desnutrido jornalismo cultural da época, se constituíram assim enfeixados, num autêntico tolicionário engendrado pelo establishment, que visava, por esse meio, sufocar a insurreição concreta. 

O achismo e o chute - traços marcantes desse belicoso tolicionário - sublinham, como que num reflexo condicionado, a recepção do bom senso com relação a informação nova. "A poesia concreta pode ser colocada no mesmo plano da Bomba de Hiroshima". Nelly Novaes Coelho, Diário de São Paulo, 4 de setembro de 1.974. Dentre manchetes, frases de efeito francamente malcriadas e resenhas tomadas por pânico catastrófico, como o fragmento citado acima, destaco - entre tantas outras pérolas - mais uma tirada de brilho especialmente melancólico, imaginada por Affonso Romano de Sant'Anna. Ei-la: "a poesia concretista emparedou toda uma geração a partir de 1.956". Registre-se, isso foi escrito em 1.976. Logo, não me parece um absurdo interpretar este diagnóstico da seguinte maneira. O crítico parece reforçar - mirando de soslaio - a tese maledicente, sustentada por uns e outros, de que a poesia concreta colaborava indiretamente com o regime militar. Não foi por outra razão, aliás, que Autran Dourado achou por bem definir a prodigiosa militância concretista, no sentido de abrir/conquistar espaço - no âmbito de editoras, jornais e revistas -, de modo a dar mais visibilidade às suas idéias, em termos de que esse exercício assumia a forma de um "poder quase ditatorial". E insistia o crítico, "eles movimentam-se para todo lado". Visão, 10 de novembro de 1.978. A essa geração amordaçada, digo, emparedada, não restava então outra escolha senão vingar-se, cuspindo sobre os déspotas esclarecidos do concretismo, slogans como alienação, formalismo, castração. De outra parte, a Exuberância Latina, o Lirismo Funcionário Público e o Nacionalismo Esquerdofrênico compunham o ideário da impotente geração. 

Voltando nossa atenção para a poesia produzida no Rio Grande do Sul àquela altura, com um olhar que, ao mesmo tempo, abarque certas constantes culturais entranhadas no corpus dessa série literária, vamos constatar sem dificuldade a existência dos representantes locais da geração supracitada. Mas, embora preservando, grosso modo, as mesmas linhas, nossos cultivadores tinham a informar-lhes outros elementos e peculiaridades. Tais peculiaridades - que serão examinadas mais adiante -, contaminadas por um elenco de idéias feitas, fizeram a tormenta da poesia concreta chegar até nossas terras com um poder de destruição quase nulo. 

Pode-se dizer que no caso do Rio Grande do Sul jamais existiu uma geração emparedada a partir de. Mas, sim, que respeitando uma tradição imemorial, sempre tivemos gerações emparedadas. Sempre houve - e o legendário gaúcho, consubstanciado no revolucionário farrapo, ser do contra, reforça - uma tendência para o autoemparedamento. Autonomia. Têmpera Individualizadora. Eufemismos. Autoemparedar-se pode significar: o sentimento impreciso de ser, talvez, mais pampa do que a floresta tropical, de par com a secreta nostalgia - açoriana? - com uma tepidez que nos teria sido usurpada pelos deuses. Tudo se resolvendo em imobilismo autocomplascente, malgrado uma ligeira queda, ao que tudo indica, para o pampa. O pampa épico do Negro Bonifácio e Martin Fierro. 

O ponto de vista do cineasta argentino radicado no Brasil, Carlos Hugo Christensen, em que pese ter sido expresso noutros termos, é, rigorosamente, o mesmo. Diz ele: "Até Porto Alegre você ainda está no universo do pampa; depois de Porto Alegre entra-se no Brasil" - registro mnemônico. 

Deixando de parte o mito macunaímico em que nossa identidade nacional é tematizada como um bloco carnavalesco - a nação cujo caráter apresenta-se multifacetado, mascarado -, não podemos, mesmo que derivemos para o reducionismo, negar alguns fatos ou figuras de uma verdade: o rio-grandense enquanto imagem erige-se como o brasileiro do-contra, o mais politizado. Aquele que, neste extremo sul, deve conferir, ou não, o selo de qualidade aos produtos culturais provenientes de todas as partes do país. Tais produtos passam, aqui, por uma prova de fogo. Um público muito refinado e exigente trata de separar o joio do trigo. O Rio Grande do Sul ocupa duas posições - para uns, ambas traiçoeiras; para outros, prestigiosas. De uma parte, é o estado hours-concour da União, não compete. De outra, a honraria: fazendo jus a sua argúcia e sensibilidade, assume a condição de guardião dos bens espirituais - as artes e as ciências - responsáveis pelo sorriso da sociedade, até prova em contrário. 

Parece difícil de acreditar, mas este estado representado por um povo tão bem informado e crítico, não se mostrou nem um pouco entusiasmado com as experiências de vanguarda em geral --mesmo o modernismo foi aclimatado de mansinho e com toda prudência -, e, particularmente em relação à poesia concreta assumiu uma atitude de soberano desdém. Com efeito, os poetas, a elite letrada e aquela classe de diluidores que, segundo Ezra Pound, "produz a massa principal da literatura", e que em verdade néxistent pas, leur ambience leur confère une existence; enfim, todos estes cidadãos preferiram não levar a sério os tais poetas paulistas que ousavam dar por encerrado o ciclo histórico do verso. Se Affonso Romano de Sant'Anna soubera que havia um lugar, uma geração que por sua natureza mesma se autoemparadava, tendo em conta a preservação de sua originalidade friorenta - mais ou menos bem-sucedida no resistir às influências vindas do centro do país -, por certo exultaria. E ficaria aliviado, pelo menos em parte, pois haveria ainda um ponto de resistência em defesa do verso e do humano, negados acintosamente pelos praticantes daquela poesia tão destrutiva quanto um artefato nuclear. 

A incômoda sensação de que somos um caso à parte, ganha contornos mais dolorosos quando identificamos em todas as grandes capitais a existência de artistas, ou de publicações, partícipes dos debates acerca da poesia concreta e seus desdobramentos. E, não obstante os ismos episódicos e algum espalhafato, características frisantes dos momentos de ebulição artística, em todos os centros culturais dignos dessa denominação podemos apontar, no mínimo, um nome - ou uma obra - que, por suas qualidades realizáveis, logrou ultrapassar os limites programáticos dos quais, numa etapa inicial, fora tributário. Assim, tivemos Paulo Leminski em Curitiba; Affonso Ávila em Belo Horizonte; José Lino Grünewald e Ronaldo Azeredo, ambos no Rio de Janeiro, o Poema Processo, que parece ter vingado com mais força no norte-nordeste - Salvador, Recife e Natal -, e cujo teórico-porta-voz mais conseqüente foi o poeta Wlademir Dias-Pino. Este poeta e Décio Pignatari estão entre os primeiros realizadores de poemas semióticos: poesia não-verbal. 

Não se trata de prantear por aquilo que não houve; ou seja, uma adesão inteligente ao movimento da poesia concreta. Estou apenas chamando a atenção para o que parece ter sido - e continua sendo - uma tremenda falta de curiosidade dos comensais do banquete literário sul-rio-grandense. Desdém e apatia. Nem militância à favor, nem contra. Ninguém foi tão indiferente às vanguardas das décadas de cinqüenta e sessenta, quanto o gaúcho. Até mesmo a fria Alemanha - permitam-me um salto transatlântico - contribuiu e tem contribuiu com a antitradição experimental. E, em se tratando de "poesia concreta de exportação", a Alemanha é até hoje o país que melhor tem acolhido a produção criativa brasileira. Para além do mero registro, fica a instigação: todos nós sabemos com quantos alemães se fez - se faz ainda - a cultura do Rio Grande do Sul. Deste modo, fica difícil de se sustentar a tese de que na raiz de nossa recusa sistemática ao novo esteja um ethos, ou uma estética do frio. Vale dizer, tal ethos pressupõe, salvo engano, a fantasia essencialista de um perfil regional irredutível moldado, por sua vez, às nossas baixas temperaturas. A diferença existe, longe de mim negá-la. No entanto, creio que as diferenças devem ser creditadas mais a um eidos do que a um ethos inexpugnável. Cabe, aqui, sinalizar com Wittgenstein: "a idéia é como óculos assentados sobre o nariz e o que vemos, vemos através deles. A idéia de tirá-los sequer nos ocorre". Que espécie de óculos o gaúcho mantém assentados sobre o seu nariz? Que idéias lhe têm servido de escopo para definir sua ação diante dos fatos? 

Confesso que não tenho como responder a estas indagações. E, ademais, não é meu propósito aqui esgotar o tema. Minhas especulações vão no sentido de tentar explicar, atento às minhas limitações, porque, dentro do conflito oximoresco entre tradição e ruptura - e centrado no campo da criação verbal -, a poética sul-riograndense tem se mantido ao lado do primeiro termo. Tal opção pressupõe a fidelidade a um repertório qualquer, a uma memória sistematicamente reificada, ao fio condutor de alguma filosofia e seus conceitos de bem e mal. A este propósito, convém refletirmos com Karl Popper: "Todos nós temos nossas filosofias, estejamos ou não conscientes desse fato, e nossas filosofias não valem grande coisa. Mas o impacto de nossas filosofias sobre nossas ações e nossas vidas é muitas vezes devastador. Isto torna necessário que testemos melhor nossas filosofias por meio da crítica". Apud Ivan Hingo Weber em seu Curso de Filosofia Inexistencial, Floruit, Porto Alegre, 1.996. Sendo assim, será preciso acrescentar que direciono minha crítica a um certo tipo de pensamento cujo sintagrama "tradição do-contra" é uma sua diluição pitoresca. Quanto a tentativa de justificar esse ou aquele gesto/evento em função de um ethos pretensamente gaudério, idêntico a si mesmo e contraposto, por exemplo, ao do jagunço - esses tipos díspares, como escreveu Euclides da Cunha -, resta dizer: isto é prosa, figura de romance naturalista. Material vivissecado por folcloristas de plantão. 

Retornemos então ao ponto em que paramos. Como vimos, os aparelhos vanguardistas, apesar da forte resistência contrária, eram semeados pelo Brasil afora. No extremo sul reinava a paz. O bom-mocismo literário. De tal modo que se os poetas do período tivessem diante de seus olhos os poemas de Bertran de Born - poeta provençal, poeta da guerra -, aprovariam a atitude de Dante Alighieri, pois o florentino na sua Commedia "pôs este no inferno por tratar-se de um provocador de desordens". Bertrand de Born, uma das personae de Ezra Pound. Ouçamo-lo "através de" Pound, em tradução de Mário Faustino: 

Tudo aos diabos! Todo este Sul já fede a paz (...) 

Melhor o tremor de uma hora do que meses de paz 

Mesa gorda, fêmeas, vinho, débil música.

Neste solo árido, impermeável ao enraizamento da insolência experimental, indiferente ao que se convencionou chamar de crise do verso, foi quase impossível cultivar o novo, ou se preferirem, pelo menos o discordante. Era uma terra estéril onde a palavra - a clareira do Ser, segundo Armindo Trevisan - e o discursivo se mantinham firmes na sustentação dos modelos consagrados, dando largas à magia verbal e ao mistério arrebatador das metáforas 1. Débil música. Numa tentativa de aproximação a essa poesia que, em tal solo, apenas ela, efetivamente teve condições para se desenvolver, pode-se dizer que hesitava entre um modernismo tardio incorporado meio a contragosto e a chamada geração de 45 - reação de corte rilkeano ao viés mais radical da poesia de 22. Contra o poema-minuto e o poema-piada, a angústia da seriedade. 

A imagem de uma terra estéril, impropícia a semeação concreta, não faz menção direta ao Eliot de The Waste Land, poema capital, emblema verbal da modernidade e, diga-se de passagem, poundiano por excelência. Mas, antes ao Eliot de Four Quartets, cujas preocupações com o Tempo, vetoriado para o aqui-agora, "imóvel ponto do mundo que gira"; a dor-de-estar-no-mundo, fraturado por deux guerres; e, finalmente, a conclusão de que "somente através do tempo é o tempo conquistado", vale dizer, o homem a realizar-se como História, "nem só carne nem sem carne", resultaram numa tábua de preceitos aos quais a poesia sul-rio-grandense não quis ficar indiferente. E, embora um tanto perplexa, não vendo como reagir perante tantas mudanças, mergulhou na atmosfera eliotiana justamente porque ela parecia indicar "um período de construção criteriosa". E pregava:"o tempo passado e o tempo futuro" - desligados do momento presente - "não admitem senão uma escassa consciência". 2 

Graças a esta leitura bastante sumária dos Four Quartets - publicado em 1.943, portanto, vinte e um anos depois do perturbante The Waste Land -, nossa geração emparedada começava a se sentir protagonista de um tempo e de um lugar, ainda que misteriosamente esfumados. Mas, tempo e lugar, às vezes quer dizer contexto histórico. E o contexto histórico exigia, ou melhor:

A Idade exigia um molde de gesso 

Feito com rapidez, não obra-prima 3

E mais, exigia soluções urgentes, conteúdos, mensagens calcadas na hipotaxe: ordenação, hierarquia de princípios, desenvolvimentos lógicos. A hipotática oratória de esquerda - na mesma fonte bebe a sua antípoda - combatia tanto o regime de exceção como os formalistas, os antidiscursivos, os alienados defensores do raciocínio paratático, ideogrâmico: as palavras suspensas no branco da página, sem um nexo causal evidente. Não-linearidade. 

De acordo com os critérios da periodização literária, o ciclo das vanguardas abarcaria o período que vai de 1.956 a 1.968. Pois bem, num determinado ponto desse processo, explode o golpe militar. Os anos de chumbo. Como todos sabem, os turbulentos fatos políticos que o precederam e tudo o que se sucedeu imediatamente após a sua instauração, vincaram traumaticamente todos os debates socioculturais que perpassavam o momento em questão. E a série literária recebeu, obviamente, os estilhaços que lhe eram devidos. Chamado a posicionar-se perante tal conjuntura, o Rio Grande do Sul se transformou num exemplo de resistência - o Movimento Pela Legalidade conduzido pelo engenheiro Leonel Brizola permanece como um trunfo do populismo. A História estava acontecendo aqui. Mas o que importa mesmo é chamar a atenção do leitor para o que se segue. A tonalidade eliotiana dos nossos dilemas; "o cuidado de auscultar a natureza da nossa produção poética, fugindo ao engodo de pretender subordiná-la a tendências observadas além das nossas fronteiras". 4 (grifo nosso); e, finalmente, a convocação a participação política, se embaralham de tal maneira que o produto resultante tomou a forma de uma reação conservadora diante das dúvidas impertinentes propostas pela poesia concreta. A vanguarda era alienada. A tradição sul-rio-grandense entendeu que tal poesia geométrica acabaria por "permitir que a técnica ocupasse o espaço destinado ao homem". 

Donaldo Schüler, no seu livro A Poesia no Rio Grande do Sul, apresenta-nos três poetas que, segundo o seu ponto de vista, figurariam como os representantes locais do movimento geral das vanguardas de cinqüenta e sessenta. São eles: Pedro Geraldo Escosteguy, César Pereira e Hugo Ramirez. 

O ensaísta começa a sua defesa pelo poeta-pintor: "Escosteguy rompe a resistência contra o vanguardismo visual que o Rio Grande do Sul oferecia por volta de 1.960". Comenta que o poeta, para conseguir realizar tal proeza "teve que transferir-se para o Rio de Janeiro, um dos núcleos da agitação". E arremata: "em Porto Alegre, não teria levado o pendor para a objetividade e a precisão além do provincianamente tolerável". O relativo sucesso de Escosteguy no exterio - teve seus quadros expostos no MAM e nos anos 60/61 colaborou na revista O Cruzeiro - deixou os seus naturais embasbacados. Era preciso dar passagem ao jovem talento. Schüler prossegue fazendo considerações acerca dos trabalhos de César Pereira e Hugo Ramirez, procurando com grande erudição ressaltar-lhes os indicativos, as linhas de força que definem o fenômeno do texto criativo de ruptura. Mas, em que pese a boa vontade do crítico, nenhum dos três poetas, a meu juízo, encarna, ou incorpora, o feeling do vanguardista intrínseco. Grosso modo, o que se observa em todos eles, é uma árdua mise-en-scène experimental, efeitos de superfície, alarmismo medroso no que concerne aos destinos do Ser, inclusive porque o discurso aporético das vanguardas, levado até suas últimas conseqüências, tende a eludir o que conhecemos por significado - e isso seria o Nada, "ou quase uma arte", acrescentaria Mallarmé. Para os nossos vanguardistas, a poesia ainda é mistério e enigma. Não é objeto, poesia-coisa. Em síntese: sob a frágil capa de procedimentos estilísticos que remontam na verdade às vanguardas do início do século - palavras em liberdade, colagens à la Apollinaire -, subjaz um pastiche de humanismo, uma notação metafísica ready-made, adversária da revolução eletro-eletrônica. 

Acompanhando de perto os passos de Donaldo Schüller na análise da obra desses poetas, podemos flagrar - embora não tenha sido a intenção do crítico -, por assim dizer, os pontos fracos, os passos vacilantes com que cada um a seu modo, ingressou nesta agitação. Sobre Escosteguy, anota o ensaísta: "Coerente com o seu projeto de impedir a desumanização da arte, Noite de Balões, absorve as inquietações do homem, que derivam para as indagações do destino". Sobre César Pereira: "Condena no concretismo (...) o cerebralismo que no privilégio à objetividade elide toda ingerência subjetiva". Quanto a Hugo Ramirez, basta lembrar que "sua personalidade poética é resultado da confluência de Sileno, Adão e Orfeu". Água na fervura, águas passadas. E, no fundo das profundas, ainda a "débil música". 

Sabemos que o modernismo no Rio Grande do Sul não coincidiu em termos cronológicos com o do centro do país. Chegou com atraso, nenhuma surpresa. Nossa contribuição decisiva à poética da ruptura também não foi coincidente com as datas que assinalam o período das vanguardas. Desta vez chegamos antes. Noventa anos antes, exatamente. O responsável por tal audácia foi o dramaturgo e poeta Qorpo Santo (1829-1883). 

O autor de Mateus e Mateusa é, sob todos os aspectos, um artista verdadeiramente revolucionário. Fundador. Em termos poundianos, não há outro meio de classificá-lo senão como inventor. Segundo Guilhermino César, foi o precursor do Teatro do Absurdo 5. Já para outros um surrealista avant-la-lettre. De minha parte, restrinjo-me a destacar seu teatro-síntese, antiteatro, teatro para acabar com o - ou um certo tipo de - teatro: a well made play, modelo do drama realista do século dezenove, como anota Leda Martins em seu O Moderno Teatro Qorpo Santo, Belo Horizonte, Ed. UFMG, 1.991. O teatro de Qorpo Santo, espécie de anti-arte - o que fez Décio Pignatari declarar que a linguagem qorposantense é pop e ponto. Dentro dessa perspectiva, e recorrendo a Roman Jakobson, acrescentaria que os distúrbios afásicos de sua linguagem concorrem para a desestruturação da cena teatral. Não obstante a prosa sobre a qual se assenta todo o seu teatro, o que Qorpo-Santo faz chama-se poesia. Pensa ideogramicamente. Suas comédias são construídas segundo um princípio de montagem: blocos narrativos que se justapõem sem que haja entre eles o menor fio de enredo. Linguagem em dissolução, "a ida inacabada do subjetivo ao objetivo". Ou como escreveu Leda Martins: "pura experimentação, flashes de situações diversas que se sucedem no palco sem apresentarem seqüência ou unidade". Anti-clímax. Qorpo Santo ama as rimas internas. O efeito jocoso provocado por essas rimas engastadas no metadiscurso dos seus personagens, saturando, abrindo fendas no tema e no argumento, se constitui no exemplo mais simples do distúrbio afásico da contigüidade - prosa - encontrável no teatro de Qorpo Santo. Parafraseando Jakobson: Qorpo-Santo, a inaptidão para o discurso teatral previsível e a deteriorizaçào da capacidade de construir enredos propícios a montagens anêmicas. 

Mas, ainda há lugar para todos no teatro qorpo-santense. Há, por exemplo, lugar para os ideólogos da desconstrução e do multiculturalismo. A título de instigação, notar: o sexismo carnavalizado, mescla de misoginia e feminismo grotesco; o machismo circense, homem-palhaço travestido de mulher: laranjas saltando do sutiã. E para os estudiosos de literatura comparada, não será custoso perceber que o grosso e o fino - the hard and the soft - na criação verbal oitocentista do Brasil estão emblematizados, respectivamente, em Qorpo-Santo e Machado de Assis. 

Pois é, a poesia concreta está completando quarenta anos. De 1.956 até agora, num lento progresso de assimilação, todos nós, leitores de poesia, assistimos à peregrinação dos vietcongs concretos com atenção. Dos campos de batalha à cátedra. Poesia concreta virou concretismo. Verbete de enciclopédia. Não faço ironia. É a pura constatação de um fato. O próprio Décio Pignatari, em entrevista, conclui sucintamente: "a poesia concreta mudou, tem mudado, vai mudar". Da cátedra à música popular. O fino biscoito para as massas. Para os humanistas as traduções dos trigênios vocalistas, mais do que insuperáveis, são a prova gritante de que a exuberância do eu objetivo não pode ser calada. As polêmicas se diluíram. Poesia concreta também é poesia: a pedra de toque. 

No Rio Grande do Sul, alguns poetas da minha geração vêm mantendo um diálogo mais ágil e não-excludente com os produtos dessa poesia e as questões suscitadas por ela. As formas escolhidas para pôr em ação semelhante diálogo são bastante diversas. Assim, a meu ver, temos por exemplo, alguns poetas que optam pelas simples incorporação dos recursos espaciais aos seus próprios textos, instalando-se, dessa maneira, entre o Mallarmé de un Coup de Des e a fase ortodoxa da poesia concreta; outros que se identificam mais com a prosa concreta das Galáxias de Haroldo de Campos - não quero dizer com isso que façam aquela ficção que, por sua mobilidade fugidia, acaba dissipando o escrito, mas, antes, que tendem a uma poesia caleidoscópica, algaraviante, do tipo palavra-puxa-palavra -, O Romance de L e V, de José Antônio Silva, serve como exemplo 6; há outros ainda que revisitam com originalidade o Paulo Lemisnki-Bashô, tão dedicado a aproximar o minimalismo da poesia concreta à síntese do haikai. Ao mesmo tempo, esses poetas deixam-se seduzir pela poesia da música popular, e a poesia de Ricardo Silvestrin aprofunda essas relações com refinado amor-humor; e, por último, temos também um restrito número de poetas-escritores que prefere ver o limite disciplinador da poesia concreta permeado pelo conceito poundiano do logopéia. Tal releitura não se pretende inédita; não, pois o salto participante defendido por Décio Pignatari é, talvez, o seu provável ponto de partida, porquanto neste saldo o conceito de logopéia, enquanto ironia - hostilidade risonha -, enquanto "dança do intelecto entre as palavras", adquire um tonus mais destrutivo, mais intransigente e investigativo em relação aos discursos falaciosos e à "linguagem nebulosa dos trapaceiros" que "serve apenas a objetivos temporários".N Hingo Weber e o autor do presente artigo têm orientado suas realizações em consonância com esta proposta. Roteiros. Projetos. 

É, evidentemente, uma descrição muito breve acerca dos desdobramentos da poesia concreta no aquiagora sul-rio-grandense, e tomando Porto Alegre como a cena principal. A prudência regeu a opção pela brevidade. Ademais, o estilo retrô eclético vem ganhando cada vez mais espaço, e o vale-tudo pós-moderno embala-o. O poundiano radical, básico, acorda de saco cheio e resolve adotar um modelito tipo aristocrático, eliotiano. E sai por aí. Quem foi poetrasto nunca perde a majestade: e surge com o seu séquito mais cedo ou mais tarde. 

Para encerrar. Não tenho ilusões acerca de qual seja o traço marcante desta abordagem. É parcial. Minhas preferências ficam evidentes. Assim como minha intransigência, na medida em descarto, sem maiores explicações, esse ou aquele nome, essa ou aquela realidade. Escolhos: escolhas. Então, aos adversários renitentes do concretismo, meus sinceros agradecimentos; aos simpatizantes, que a terra lhes seja leve. E aos poetas concretos, Pound: Bright Brazilians, blasting at bastards...i

1.TREVISAN, Armindo. Nejar e a dor-de-estar-no-mundo. Revista Porto & Vírgula, Porto Alegre, nº. 25, março, 1.996. 

2 ELIOT, T.S. Quatro Quartetos. Tradução de Ivan Junqueira. R. Janeiro, Civilização Brasileira, 1967. 

3 OUND, Ezra L. Poesia/Ezra Pound. Traduções de Augusto de Campos (et al.). São Paulo, HUCITEC; Brasília, Ed. Universidade de Brasília, 1.983. 

4 SCHÜLER, Donaldo. A Poesia no Rio Grande do Sul. P. Alegre, Mercado Aberto/IEL, 1.987. 

5 QORPO SANTO (José Joaquim de Campos Leão). Teatro Completo. Fixação do texto, estudo crítico e notas de Guilhermino Cesar. Rio de Janeiro, Serviço Nacional de Teatro, Fundação Nacional de Arte, 1.980. 

6 SILVA, José A. Lá vem o que passou. Porto Alegre, Unidade Editorial Porto Alegre/SMC, 1.995. 

7 POUND, Ezra L. ABC da literatura. Organização de Augusto de Campos, tradução de Augusto de Campos e José Paulo Paes. S.Paulo, Cultrix, 1.970. 
 

*poeta e crítico

 

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