A METÁFORA
Marcos Rolim
Zero Hora, 16/10/2005
 

O primeiro referendo da história brasileira é denunciado por aqueles que defendem as armas. Custará muito caro, é a primeira acusação. Os valores orçados, como se sabe, extrapolam os R$ 200 milhões. Em 2004, o Brasil gastou R$ 146 bilhões no pagamento dos serviços da dívida. No mesmo ano, gastou pouco mais de R$ 14 bilhões em educação. R$ 146 bilhões significam R$ 400 milhões ao dia. O referendo sobre o comércio de armas - definido pelo Congresso Nacional e não pelo governo - custará, então, pouco mais que 12 horas da política oficial de pagamento da dívida. Mas, quando o governo empenha o futuro do país pagando a dívida, é elogiado pelos mesmos que denunciam os gastos do referendo. Penso que "caro" mesmo são 40 mil homicídios/ano por arma de fogo. Estou impressionado, também, com o número de novos amantes da liberdade que temos no Brasil. Gente que é capaz de sustentar, com lágrimas nos olhos, que políticas de desarmamento antecedem as ditaduras. Curioso é que quando, em 1964, uma ditadura de verdade nos foi empurrada goela abaixo, por mais de 20 anos - sem política de desarmamento anterior -, a turma desses radicais da liberdade não disparou um tiro. Talvez porque suas mãos estivessem ocupadas demais aplaudindo o golpe.

Lancei, semana passada, um livro sobre as evidências científicas acumuladas em torno das correlações entre armas de fogo, violência e criminalidade. Ao todo, entre livros e pesquisas específicas, examinei 78 trabalhos científicos, incluindo alguns estudos com evidências pró-armas, como o de John Lott. Imaginei que alguém pudesse discutir as evidências colhidas ou oferecer outras que as contrariassem. Nada. Nenhuma reação. As opiniões estão formadas muito antes de qualquer conhecimento e quem se arrisca a defender o SIM é porque é "infantil", "romântico" ou está a soldo de multinacionais interessadas em acabar com a indústria brasileira. Enquanto isso, os "adultos" seguem estimulando a produção industrial do medo e a fantástica mistificação de que armas trazem segurança. Tudo isso apresentado em nome do "direito", é claro. Um direito que tem implicado a migração de milhares de armas de fogo para as mãos de bandidos por furtos e roubos. Ou alguém tem notícia de alguma fábrica que produza armas de fogo para o crime? Sejam brasileiras ou estrangeiras, armas de fogo são sempre produzidas legalmente e adquiridas por alguém "de bem", no Brasil ou no Exterior. Depois, uma grande parte delas migra para o mercado ilegal. O pretenso "direito" de comprar armas - na verdade um privilégio exercido por apenas 5% dos brasileiros, em grande maioria os mesmos que possuem altas rendas e casas com muros, alarmes e grades - alimenta o nosso "direito" de sermos assaltados nas ruas por bandidos comuns armados do velho e prático 38 da Taurus.

Mas o pior de tudo não são as opiniões pró-armas. O pior são os valores que se afirmam contra a civilização e em favor de algo como o Estado da Natureza de que nos falava Hobbes. Assim, as leis "não funcionam", os tribunais "são incompetentes", as polícias "não prestam", a política é "uma farsa", o mundo é cruel e a solução é... uma arma carregada por perto! Como explicar esta reação? Em Alegrete, encontrei um cidadão de ótimo humor que me disse: "Entrego meu último Viagra, mas nunca entregarei minha arma". Trata-se de uma boa síntese. Algo que pode ser mesmo psicanaliticamente muito revelador. Quem sabe todo este debate não seja, no fundo, uma metáfora sexual?