Como quem mastigasse abelhas
por Zilmar Silva


Falavam que mastigava abelhas na primavera. Indiferente aos comentários, Samuel captava cores e desaprendia nuvens. Percebia o céu pesado demais nessa cidade quando dizia, assim solto ao ar, que seu cinza possuía uma dor sentida por toda a distância dos olhos até as nuvens. Samuel sempre pensou que a primavera era a estação das abelhas. Surgem com o intenso colorido das flores e buscam o pólen como uma espécie de desespero, um disfarce para a salvação ou para a perenidade.

Falavam que mastigava abelhas na primavera. Não sabiam que tudo iniciou, assim como tudo no mundo, por mera distração. Sentiu naquele início de tarde, um certo frescor de eucalipto enquanto bebia o café. Um adocicado marcante e tão colorido quanto o rosa e o lilás das flores improvisadas de estrado pela calçada. Estava bebendo o café com abelhas. O corpo franzino e resistente do inseto havia se diluído em mudez naquela taça de café escuro. Samuel percebeu na língua, após morder um minúsculo favo, uma pequena ferroada a lembrar carícias e confidências esquecidas naquela tarde em que passou a trazer a primavera entre os dentes.

No caminho que leva ao Largo do Matosinho, muitos afirmam terem visto abelhas saírem de sua boca enquanto olhava o movimento das nuvens no parque. Sua serenidade contemplativa estabelecia um contraponto com o desenho daquele céu tão pesado que parecia desabar a qualquer momento. Era um paraíso frágil. Muitos viram Samuel, abaixo dos jacarandás floridos, contando histórias repletas de cor. Rendidos ao encantamento de seu verbo, diziam que suas palavras possuíam um cheiro adocicado de eucalipto enquanto muitas abelhas, alheias aos ouvintes, pareciam sair dos lábios do inusitado orador.

Em uma de suas memoráveis palestras, Samuel revelou que o frágil perfume das flores era sublimado em mel imortal pelas abelhas. Acrescentava:

- Vão observar as abelhas e aprendam como elas são laboriosas. As abelhas se servem das flores de um prado inteiro, para com elas fabricar um só mel.

Samuel garantia que as abelhas teriam nascido das lágrimas do Sol ao caírem sobre a Terra. Sua desolação se transformou em nuvens amedrontadas que ameaçavam descer ao coração dos homens naquela cidade. Poucos compreendiam suas lições e apontavam precariedade em suas palavras, afirmavam que seu desvario era sua perdição. Samuel não mais compartilhou olhares e segredos atravessados pelo frescor do eucalipto. Decidiu retornar às leituras dos cafés em companhia das abelhas cada vez mais habituadas a lhe frequentar seus cabelos e barba. Os demais frequentadores do café da Travessa dos Misantropos, mesmo acostumados, sempre eram surpreendidos quando os insetos surgiam de sua boca ao cumprimentar alguém de uma mesa próxima.

Samuel estava desaparecido por vários dias. Uns dizem que decidiu se esconder no final da estação. Outros falavam que as abelhas poderiam ter engolido ele por dentro. A realidade é que não havia sido mais visto pelo Largo do Matosinho ou pela Travessa dos Misantropos em que costumava tomar seu espresso com as abelhas.

Samuel queria ser encontrado, seu desejo era retornar ao convívio dos homens, porém se encontrava distante. Não sabia como fora parar naquela terra em que o céu era tão distinto, não menos pesado, mas de um luminoso lilás e intensamente púrpuro nos finais de tarde como jamais Samuel havia captado com seus olhos brilhantes. Possuía muitas saudades dos cafés e de ver as nuvens se movimentando no parque. Também sentia a ausência de uma amiga que não conseguia lembrar o nome agora. Na boca se acumulavam alguns favos adocicados até cuspir aquele excedente de açúcar com o resto de algumas abelhas. Mantinha uma certa distância por reserva e discrição.

Os sons dos pássaros eram agradáveis de se ouvir, porém incomodavam quando buscava seu descanso no parque. Todas as manhãs aqueles giros dos pássaros lhe eram insuportáveis. Serenava apenas com a violência das cores que explodiam tonalidades ocres, amarelas e rubras em suas pupilas generosas e sem rancor. Samuel não lembra quando perdeu a noção do tempo. Talvez dois dias, dois anos, dois fartos séculos. Percebia o tempo sem espelhos, desmitificado pela primavera que florescia pelos seus cabelos e barba misturada às raízes da terra. Trazia abelhas entre seus dentes e, pelo sensível paladar, sentia o gosto daquela terra opressora lhe arrancando a docilidade macia dos favos de sua língua glaceada.

Samuel não ia longe. Sentia lhe crescerem as unhas e uma quietude dentro de si. Os sapatos dos homens estavam tão gastos naqueles incontáveis e imprecisos dias. Sentia um forte calor em sua face, mas não sabia se era o sol ou alguma estrela incendiada perto de seu corpo. Samuel estava confuso e muito cansado. Seu suor orvalhado hidratava seu corpo horizontalizado em seu improvisado endereço, escondido entre a relva e as pedras. Suas repetidas ocupações formavam uma nova e elevada rotina de resistência pela vegetação. As invasões ocorriam geralmente à noite; sendo as formigas atraídas pelo seu hálito, um frescor disputado pelas taiocas e pelas quem-quem. Contrariado e sem ternura, começou a odiar aquelas formigas. Passou a combatê-las com estopas de teias que obstruíram suas narinas e com a cera queimada produzida pelas abelhas nas extremidades de seu corpo. Dificultaram o acesso das formigas. As abelhas-pedreiras - senhoras do fogo - permaneciam em sua cabeça, vigilantes, próximas aos chumaços de teias para eliminar, quando possível, o iminente ataque das aranhas atentas ao voo das campeiras. Essas abelhas narcotizavam as aranhas sobre as quais criavam suas larvas, tendo, em Samuel, sua habitação. Samuel se tornara um apiário. Estava em tudo que nasce e em cada coisa iniciada.

Nos dias de seu desaparecimento, Samuel trazia a fisionomia endurecida da pedra, amarelecida pela maturidade do mel com o qual se alimentava. Mordia desesperadamente sua língua confeitada para devorar os incontáveis caroços de pedras adocicadas, essas amêndoas petrificadas de mel. Aqueles minúsculos seres eram protegidos pelo seu corpo, considerado um sagrado apiário, e lhe protegiam com as ferroadas que lhe queimavam a pele e lhe aqueciam o sangue.

Falavam por muitos anos que Samuel mastigava abelhas na primavera. E quando os homens da cidade não mais lembravam de suas palavras sobre a docilidade dos caminhos e das primaveras, Samuel foi visto. Disseram que trazia os cabelos grisalhos e o semblante sereno de quem estava a incontáveis anos distante da presença humana. Seu retorno naquela noite, próximo à cidade, foi dada como certa ou apenas mais uma estória contada por quem diz amar a verdade, mas vive a flertar com tudo que lhe fantasia. Também dizem que Samuel questionou sobre o abandono das expedições, naqueles anos, pela sua busca. Foram escutados apenas os zumbidos impiedosos e constrangedores das abelhas.

Reagiu ao silêncio de seu questionamento, esfregando as mãos sobre os cabelos e barba que começaram a incandescer, trazendo um tom avermelhado até se tornar ruivo. As pessoas, perplexas e temerosas, foram seduzidas por uma hipnótica dança de nuances pela noite que, de uma escuridão compacta, passou a girar freneticamente no ritmo luminoso do corpo de Samuel que oscilava em cor amarelada, alaranjada, amarelo-ouro, castanho-avermelhado, louro, rubro e ocre. Sua anatomia fulva e inchada pelas ferroadas das abelhas, que lhe saiam pela boca qual brasas animadas pelo vento, começava a incendiar. Seu corpo explodiu em enxame de fogo e um Sol surgiu na noite.

Então as abelhas caíram sobre a Terra.



Zilmar Silva é professor de Literatura e mestre em Teoria da Literatura.