Dicionário do mau digitador
por Ernani Ssó


Cometo tantos erros ao digitar que um dia prestei atenção neles, para pôr na correção automática. Aí, para minha surpresa, descobri que boa parte dos meus erros não eram erros - eram criações de palavras novas. Mais: muitas delas fazem tanta falta que não sei como pudemos viver e escrever sem elas. Mais ainda: são tantos erros que não se pode atribuir ao acaso. É isso mesmo, meu caro: é preciso atribuir ao meu talento ímpar para o erro, talento afinado ao longo dos anos.

Então comecei a anotar os melhores erros, que publiquei pelaí como O dicionário do mau digitador. Mas um belo dia percebi que meu talento para o erro não era muito grande, embora maior que para o acerto. Sim, os erros se repetiam com uma monotonia danada ou não faziam sentido, enfim, eram erros que qualquer aluno de uma escola sem partido poderia cometer. Tive de suspender meu dicionário. Confesso que fracassar inclusive nos erros não foi coisa agradável de digerir.

Então a pandemia deu as caras. Logo nas primeiras semanas, comecei a cometer alguns erros razoáveis. Anotei-os por hábito, atribuindo tudo ao nervosismo, mesmo que não me sentisse nervoso. Mas os erros aumentaram e alguns até me pareceram brilhantes, nem pareciam cometidos por mim. Houve dias em que despachei três ou quatro. Uma manhã devo ter batido meu recorde: cometi três na mesma frase.

Talvez o vírus não seja a causa disso, logo os cientistas descobrirão. Mas se é, logo vou avisando: não sou cúmplice. Não mesmo. Me mantive o mais longe possível desse bicho. Só o conheço de nome e olhe lá. É mais provável que a causa seja o álcool gel, única coisa nova entre meus dedos e o teclado.

Os verbetes abaixo estão por ordem de criação. Esperar que eu erre com grande brilho e em ordem alfabética, ainda por cima, é demais para um pobre marquês.

Poersonalidade. Personalidade doentia, mórbida. Mas genial.

Destraque. Permissão para peidar.

Retrorcido. Além de retorcido, ultrapassado.

Energúmero. Aquele matemático idiota.

Ansaia. Desejar muito uma saia, nos dois sentidos.

Sargente. Coisa rara, um sargento humano.

Salavar. Salvar alguém gastando muita saliva. Ou salivar com um bom salvamento, coisa de taradinho com fixação em bombeiros e salva-vidas.

Avisões. Não se trata de grandes avisos, não. Mas visões de aviões. Deve ter trauma de guerra.

Crespúsculo. Entardecer com nuvens cacheadas. Um amor.

Impaciante. É o sujeito que fica nervosinho na véspera.

Bastalhões. Chega de escolas de formação de bestalhões. Se Japão e Alemanha, países que entraram em inúmeras guerras, não precisam de exército, por que nós precisaríamos, se nosso único inimigo é o próprio povo?

Alemanhã. Um certo país europeu no futuro.

Caputão. Como é chamado, no linguajar da caserna, o oficial que faz ordem unida com soldadinhos em cama de campanha.

Sáboa. Uma sábia gostosona.

Cachumbo. Cachimbo de macho.

Dinamoitar. Falar mal dos outros pelas costas.

Abacar. Abafar com o ábaco. Termo desusado, depois da invenção da calculadora.

Contra-atascar. Falar mal de uma tasca onde se comeu pior do que o esperado.

Paiosagem. Visão que brasileiros com muita saudade da culinária pátria têm ao contemplar as belezas naturais de terras distantes.

Estranhamentre. Modo inusual, ou mesmo excêntrico, de alguém se colocar no meio de coisas ou de situações em que no mínimo duas pessoas interagem.

Homorragia. Homem se desmanchando feito sorvete ao sol.

Susperior. Estou na dúvida: suspiro realmente justificável ou autoridades suspeitas acima de qualquer suspeita? Talvez, se errar mais umas duas ou três vezes, eu aperfeiçoe a palavra.

Sombrass. Sombras na brisa.

Acalamar. Tornar-se um sereno lulista.

Alamirante. Mirante voltado para Meca.

Fezer. Fazer com fé.

Besteria. Sinônimo de cabeça.

Informalção. Informação passada durante o cafezinho, nem sempre entre espiões.



Ernani Ssó é escritor e tradutor. Autor de "O diabo a quatro" (1985), "O sempre lembrado" (1989), "O emblema da sombra" (1998) e outros. Seus dois livros mais recentes, "Manual prático do escritor" e o romance "Lambida" (2019) estão à venda na Amazon.