A pandemia e a invisibilidade dos conflitos
por Edílson Nabarro


O mundo ainda não acabou, mas a pandemia varreu com muitas ilusões. As expressões isolamento social, obediência a protocolos, distanciamento, "fique em casa", definitivamente se incorporaram ao cotidiano do vocabulário em todas as partes do mundo. Em nenhum tempo a globalização em tempo real, a que Milton Santos se referia, evoluiu como agora para um alerta avassalador. A canção "máscara negra", que na melodia de Zé Kéti alegrava os bailes de carnaval, se transformou em máscaras multivariadas, que escondem os rostos, tornando não identificáveis aqueles que já não o eram. E a alegria transformou-se em medo e tristeza. O medo desafiou àqueles que supunham-se serem valentes e aguerridos, pois as munições do combate nem sempre eram alcançáveis. Muitos fracos e desprotegidos ficaram valentes e o temor democratizou o assédio do caos.

As tradicionais campanhas para a adoção de medidas preventivas para a proteção da saúde foram substituídas pelo temor das mortes. Com a pandemia, o medo de morrer se instalou no cotidiano de todos os mortais, sem discriminação de gênero, nacionalidade, condição social, altura e preferências sexuais ou clubísticas. A humanidade se transformou em um rebanho frágil e refém das autoridades sanitárias, dos orçamentos públicos e da dedicação dos profissionais de saúde, os quais, de cuidadores, precisavam antes serem cuidados.

Quando a OMS, definiu que o coronavírus ganhava status de pandemia, a contagem dos mortos inaugurou um censo fúnebre jamais imaginado. O cerceamento da liberdade de ir e vir, próprio dos sistemas de controle social das ditaduras, bem como o cerceamento, próprio dos condenados criminalmente, recebeu a equivalência de "prisão domiciliar", mas sem o trânsito em julgado do delito não cometido. As autoridades médicas substituíram, se bem que positivamente, os juízes togados, alguns suscetíveis de julgamento divino, por autoridades sanitárias.

O trabalho remoto, procedimento adotado excepcionalmente pelas instituições públicas nesse período de pandemia, há muito já foi implementado nas grandes empresas privadas, o que antecipadamente consolidou um cenário de atividade laboral eficiente. Essa silenciosa mudança das atividades presenciais também tem como consequência a invisibilidade das barreiras e a impossibilidade, que muitos trabalhadores possuem, de atender os requisitos tecnológicos e de treinamento para satisfazerem fluxos de trabalho.

Na área de alimentação, o atendimento do "fique em casa" impediu que os clientes pudessem receber o afago e atenção do pitoresco garçom, mas ao mesmo tempo se protegeram da tradicional gorjeta sempre recebida com alegria. Os "guardadores de carros", as garotas de programa e os pipoqueiros de parques, praças e praias, dentre outras categorias, viram seus rendimentos diminuírem drasticamente, seja pela mudança cultural, seja pela impossibilidade da tele-entrega.

Os debates esportivos e políticos legitimaram ou confirmaram que as redes sociais são o melhor ambiente para o exercício do clubismo fundamentalista, das várias formas de intolerância, fake news e desinformação.

Não é demais registrar que a pandemia coincide com uma conjuntura política de incertezas e ameaças em relação à democracia, à liberdade e à luta pela redução das desigualdades raciais e políticas. Como não há cronograma definido em relação ao futuro próximo das medidas preventivas ou resolutivas em relação à letalidade do vírus, cabe a cada um e à sociedade agir com prudência e resignação.



Edílson Nabarro é sociólogo, mestre em Economia Aplicada e doutorando em Políticas Públicas.