Quarentena
por Zeca Kiechaloski


No dia 13 de março, como cotidianamente há onze anos faço, saí do escritório. Tinha um compromisso com os cotovelos, grupo de alguns amigos para comemorar nada, apenas o fato de sermos amigos e utilizarmos a Terapia da Doutora Percy (a terapia de confronto). Mal sabia eu que os três meses prometidos virariam dias infinitos.

Estou praticamente trancado em casa desde então, já que tenho apenas os metros quadrados de meu apartamento para deambular. Graças a Deus tenho meu trabalho em casa (com algumas tempestades, é verdade) e filmes, séries, jornais, livros aos borbotões. Coisas que teoricamente não contaminam ninguém, a não ser o prazer, a raiva e a mágoa. Não saio para nada, apenas ir a farmácia e banco, para ver quanto ainda me sobra até o fim do mundo. Porque, sinceramente, acredito que estamos quase lá. Alguém inadvertidamente abriu a Caixa de Pandora e de lá de dentro saíram, desde o impeachment da Dilma, o governo Temer, o capitão imbecil, idiota e genocida, os ciclones, as inundações, a pobreza institucionalizada e este maldito vírus, invisível mas terrível.

Semana passada, depois de muito tempo e muita conversa fui almoçar na casa da minha irmã. Vesti meu uniforme de astronauta e me senti um completo idiota, porque o número de pessoas que encontrei flanando pela rua, sem qualquer proteção era desolador. Eu tinha a impressão que diziam: "Vem, me pega, me contamina, me joga no chão, me mata".

As pessoas dizem que vai passar. Cada vez acredito menos nisso. Acho que nunca vai passar. Acredito que todos teremos esta bosta. Os preconceitos, as intolerâncias, as maldades, os ódios, estão cada vez mais acirrados. E nós, fantasiados de samaritanos de filme de ficção científica, no meio, no centro, dentro de tudo isso. Estou exausto. Cansado mesmo. Passei alcool gel na alma. Meus braços estão vazios de abraços, minha boca está vazia de beijos e meu carinho anda solto por ai, enfrentando o pior, o desconhecido, o futuro plúmbeo e incerto. Morro de saudade das pessoas com quem convivo, ou convivia quase sempre. Claro, que existem muitas mais, mas estas me eram cotidianas, vizinhas, aparentadas. Procuro acreditar que vai passar. Mas, se por um acaso, não acabar, quero dizer a todas elas que meu amor está imunizado. Limpo, sem qualquer resquício de vírus. Até um dia, até talvez, até quem sabe...



Zeca Kiechaloski é ator de teatro ("O evangelho segundo Zebedeu", 1978; "A aurora da minha vida", 1985; "Nas sombras do coração", 2017; etc.) e cinema ("O mentiroso", 1988; "A cabeça de Gumercindo Saraiva", 2018; etc.), jornalista (foi crítico de tv no "ABC Domingo") e escritor ("Elis Regina", 1985; "Luiz Paulo Vasconcellos: ao mestre, com carinho", 2016).