A História do Cavaleiro Jorge
Antes de Pisar no Tomate
por Jorge Furtado
 
 
Fosse São Jorge furtado
Em lança, cavalo e escudo
Tivesse ao dragão combatido
Em pêlo, sem dó nem medo
Maior seria o seu ato
Pior ficava é a gravura
Pois um gesto de bravura
Não resiste ao mau retrato
Do feito, sobra o relato
Do fato, a angina do peito
O que era justo, é defeito
O que era dragão, vira um pato
Ninguém lembra do motivo
Resta da luta a lição
É sempre mais produtivo
Ser amigo do dragão

 

Meu Caro Otto Guerra

Quadréplica? Tretríplica? Quadrúplica? Como se chama a resposta a uma tréplica? Vamos ver o que diz o Aurélio. Verbete: treplicar: 1. Responder (a uma réplica): "Terminada a réplica, treplicou e com brilho; Não esperava que eu lhe treplicasse". Pelo jeito, a tréplica é a última instância. A língua, como sempre, aponta o caminho: paro por aqui. Prometo por tudo que é mais sagrado, por São Jorge e São Taffarel, que não direi mais uma palavra sobre este assunto. Depois de hoje, podem me acusar de formador de quadrilha, de fã do Ivan Cardoso, podem dizer que meus filmes não têm nem alma, nem rim, nem fígado, que eu estive em Sanary-sur-Mer e que o Durango Kid quase me pegou e eu sofrerei calado como melancia de feira.

Recapitulando: Otto dá uma entrevista ao CAC (Jornal da Cooperativa Artigo de Cinema, já leram?) espinafrando todo mundo. Helena diz a Eduarda que Rodrigo está com o diário. Minha réplica saiu no Não 55. Eduarda se arrepende de ter confiado em Rodrigo. Eles brigam. A tréplica do Otto está nesta edição. Seguem breves comentários sobre a dita, por ordem de entrada em cena.

Muito boa a piada da família Dinossauro. É prudente consultar um médico antes de enterrar a sogra, mas a analogia é forçada. Não costumo consultar advogados para saber se minhas atitudes são moralmente defensáveis. O que é moralmente errado não deveria ser legalmente certo. A lei é mesmo um círculo minúsculo, mas freqüentemente está do lado de fora do grande círculo da moral. Taí o 0900 e tantas outras canalhices legais que não me deixam mentir. (Sabe por que o FHC não precisa sair do cargo para concorrer? Porque a lei aprovada no congresso, contra os votos governistas, diz que o político que está no cargo deve deixá-lo, para evitar o uso da máquina do governo, se pretender concorrer a OUTRO cargo. O SFTE - Suprema de Frango Tribunal Eleitoral - se aproveitou da bananice do texto e concluiu que, concorrendo AO MESMO cargo, FHC podia continuar presidente e ser candidato. Se quisesse concorrer a uma cadeira na Assembléia do estado da Paraíba, teria que deixar a presidência. Mas ele não quis.)

A questão do orçamento dos filmes precisa ser mesmo discutida. Que tal começar agora? Acho que os prêmios públicos para produção de curtas devem ser concebidos preferencialmente para iniciantes entusiasmados e não para nós. Acho um absurdo pretender que o estado ou o município dêem, a fundo perdido, 300 mil reais para a produção de um curta-metragem. Não existe prêmio deste tamanho para curta-metragem em país nenhum. Num país miserável como o Brasil, 300 mil do estado para um curta-metragem é caso de polícia. Em tempo: isenção fiscal também é dinheiro público

Não insinuei nada. Sei que tu não foste leviano nem manipulaste dinheiro público. Desconfio que as denúncias infundadas da "turma da APTC/Casa de Cinema" ajudaram a evitar esse mico e a manter a viva a lenda do Mascarado Negro.

Achar que a gente (Casa de Cinema) faz a campanha do PT, ano após ano "sem nenhuma concorrência" é de uma ingenuidade comovente. Como é bela a adolescência! Tu acha mesmo que nos trabalhos que fizemos para o PT, municipal, estadual e nacional, não tivemos concorrência? Tem publicitário, armado de AR-15 e moto-serra, dando o rabo e mais 20 por cento para fazer as campanhas. Fazemos as campanhas do PT, ano após ano, porque fazemos bem. Enfrentamos concorrentes muitíssimo competentes. Os melhores publicitários do país e do estado estão fazendo as campanhas do FHC e do Brito. (O governo do RBS vai gastar 69 milhões de reais este ano em publicidade. Mais que o governo de São Paulo. Com 69 milhões o Brito poderia financiar 30 longas gaúchos e ainda sobrava dinheiro para 30 curtas teus, de 300 mil cada).

Tua acusação disfarçada de piada de que o PT nos paga com dinheiro público até poderia ser séria. Talvez eles possam te responder esta. Tivéssemos mais tempo para um debate e eu te diria que todo dinheiro é público.

A questão do financiamento das campanhas também é séria. A proposta do PT, de que as campanhas fossem financiadas pelo estado, me parece a melhor. Foi derrotada no congresso.

Não vou defender meus filmes de tuas críticas. Não respondo às raras críticas sérias que saem nos jornais, menos ainda responderia frases do tipo "coisa do Torero", "a trouxisse do conteúdo" ou "assistir o Ângelo foi duro para mim". (Foi duro para você, meu bem?) Fico feliz com o teu estímulo: "vocês podem fazer muito melhor". Me lembrou as frases que a irmã Helena, uma freira que meu deu aula no primeiro ano do Santa Inês, escrevia com caneta tinteiro ao lado das figurinhas de passar que colava no canto das provas: "Podes fazer melhor" ou "Continua Assim!". Prometo me esforçar mais, irmão Otto!

Não tenho preconceito algum contra a juventude do PFL ou do PPB. Tenho pós-conceitos. Eles estão no poder desde o descobrimento do Brasil. Devem ser combatidos. Democraticamente, se possível.

Interessante lembrar a censura que sofreste no caso da revista "DunDun". (Lembrei dos currículos de candidatos a vereador: "foi preso e torturado", essas coisas.) Aquilo foi um absurdo sem tamanho. Você estava completamente certo naquela ocasião. E acho que está errado agora.

Jamais consideraria tua opinião publicada num jornal sério como o CAC como sendo "um monte de papo furado", mesmo mal editada e eventualmente, como informas, inspirada "por latas e latas de cerveja". E não aceito à crítica que fazes ao Torero, menosprezando o trabalho dele com a tua análise simplista. Todo mundo é influenciado por todo mundo. Acho que devias ler os livros dele. São muito bem escritos e muito divertidos. E são fruto de muito trabalho e pesquisa.

Dizes que "alguns se opõe ao que veio antes e outros só copiam, entendeu?". Entendi mas não concordo. Todos copiam, sem saber ou sabendo. Acho que "O Natal do Burrinho" revela enorme influência dos comerciais da Varig dos anos setenta, por exemplo. Que eram ótimos. Que "As Cobras" lembra muito um trabalho semelhante do Veríssimo. Que "O Reino Azul" deve muito às animações da Europa Oriental, cartesianas até a raiz dos cabelos, algumas excelentes. Que "Treiller" deve muito ao Prof. Ludovico na Disneylândia, aos comerciais da Bozanno e aos seriados do Batman na tv. Que Rock & Hudson deve a uma porrada de cartunistas que vieram antes do Adão. Que "O Arraial" deve aos criadores do cordel. Esse papo de originalidade é conversa mole para boi dormir. Guarde para as entrevista à Zero Hora.

"Algo como um jogo bem elaborado de palavras, entendeu"? Ah, agora eu entendi. Chama-se "frase". Elas freqüentemente aparecem em bandos chamados "textos". Alimentam-se de falsas expectativas e hipóteses silvestres.

A tua descoberta de que "cada geração nega a anterior" é reveladora. Sabe que eu nunca tinha pensado nisso? Acha mesmo que esta é "uma das mais interessantes características de nós, latinos"? Você não acredita em ser colorado ou ser gremista, mas acredita em ser "latino"? Cara, teu senso de valores tá todo invertido! Ou esta é mais uma daquelas contradições que o meu modo cartesiano de ver o mundo não percebe? Deve ser.

Quanto a palavra conteúdo... Humpty Dumpty diz a Alice que quando ele usava uma palavra ela significava exatamente aquilo que ele queria que ela significasse, "nem mais, nem menos". "A questão, ponderou Alice, é se o senhor pode fazer as palavras dizerem coisas diferentes". "A questão, replicou Humpty Dumpty, é saber quem é que manda. É só isso". Conteúdo, para ti, quer dizer "alma". E é isso que falta aos meus filmes: não conteúdo, mas "alma". Esse negócio de alma é sempre muito sério. Volta e meia surge alguém pronto a dizer o que tem alma e o que não tem alma. "Vamos tomar a Terra Santa! Muçulmanos não têm alma!" "Escravizemos os índios e os negros! Eles não tem alma!" Fácil, não? Basta saber quem é que manda. "Você não tem alma!" "Não, você é que não tem alma!" "Você!" "Você!" "Torta na cara! Ele não tem alma!". Prefiro acreditar em pedaços de plástico. E tentar evitar que os brilhos do acetato atrapalhem a brincadeira. "Se você faz as pessoas rirem ou chorarem por causa de pequenas manchas negras em folhas de papel branco (ou por causa de manchas coloridas que se movem sobre uma tela branca), o que é isso a não ser uma brincadeira? Todas as grandes linhas básicas de histórias são grandes brincadeiras nas quais as pessoas caem continuamente". Isso é do Kurt Vonnegut.

Também sou teu fã.

Corporativismo, para ti, quer dizer o quê? Se não me falha o dicionário, a APTC neste episódio fez exatamente o contrário do que mandaria o corporativismo. O que tu chamas de "burrice".

Contradizendo tua expectativa com a minha lógica cartesiana, peço desde já desculpas por qualquer grosseria que eu tenha feito contigo.

Espero que não estejamos todos mortos tão "logo" assim. Tento parar de fumar, caminhar e comer pouco açúcar.

Lindo o texto do Iberê. Tão lindo como aqueles pedaços de pano e papel que ele cobria de tinta. A primeira vez que peguei numa câmara foi para filmá-lo, pintando um retrato do Xico Stockinger (81 ou 82, não lembro). Quase se podia sentir, no estúdio, o que o Peninha Bueno chama de "a língua flamejante do Espírito Santo". Veja só que desperdício: eu, ali, sem alma!

Para terminar no alto nível das citações, vai de brinde nesta trova tola um trecho de "Quando o Outro Entra em Cena", uma resposta do Umberto Eco (Cinco Escritos Morais, Editora Record, 1997, Tradução de Eliana Aguiar) ao cardeal Carlo Maria Martini, que lhe perguntou: "Em que o senhor baseia a certeza e a imperatividade de seu agir moral sem fazer apelo, para fundar a universalidade de uma ética, a princípios metafísicos?". E o Eco responde: "Eu era ainda um jovem católico de dezesseis anos e aconteceu de empenhar-me em um duelo verbal com um conhecido mais velho que eu e tido como "comunista", no sentido que tinha este terrível termo nos anos 50. E como me provocasse, coloquei-lhe a seguinte pergunta decisiva: como podia, ele, um incrédulo, dar sentido àquela coisa tão insensata que seria a própria morte? E ele respondeu-me: "Pedindo antes de morrer um funeral civil. Assim, já não estarei presente, mas terei deixado aos outros um exemplo". Creio que também o senhor pode admirar a fé profunda na continuidade da vida, o sentido absoluto do dever que animava aquela resposta. E foi este sentido que levou muitos incrédulos a morrer sob tortura para não trair os amigos, outros a infectarem-se com a peste por cuidar dos infectados. Essa é, até hoje, a única coisa que leva um filósofo a filosofar, um escritor a escrever: deixar uma mensagem numa garrafa porque, de alguma maneira, aqueles que virão poderão acreditar ou achar belo aquilo em que ele acreditou ou achou belo". Humpty Dumpty poderia chamar isso de alma. Na falta de garrafas, deixo pedaços de plástico.